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Por Analice Gigliotti, Elizabeth Carneiro e Sabrina Presman
Psiquiatria
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A quem interessa vender mais remédios no Brasil?

Diferença entre quantidade de caixas de medicamentos que as prescrições autorizam e o que os pacientes compram teria criado um novo mercado irregular

Por Analice Gigliotti
Atualizado em 19 mar 2021, 19h29 - Publicado em 19 mar 2021, 15h08

Segundo dados do Conselho Federal de Farmácias, a venda de antidepressivos e de estabilizadores de humor dispararam no ano passado, com crescimento de quase 20%. Para nós, profissionais de saúde, isso não chega a ser uma surpresa. Nos últimos doze meses alertamos, incansavelmente, que em paralelo à pandemia do novo coronavírus ocorria outra pandemia, também muito danosa: a de saúde mental.

O isolamento social, o desemprego e a escalada de mortes por Covid-19 foram gatilhos para a aparição ou agravamento de casos de transtornos mentais. Isso pode explicar, em parte, um eventual aumento, como aconteceu em outros países, de vendas de outras classes de medicamentos: as chamadas “drogas Z” (zopiclona, zolpidem e eszopiclona) e os benzodiazepínicos (alprazolam, bromazepam, clonazepam, diazepam, lorazepam, flunitrazepam e midazepam), mais conhecidos como “remédio tarja preta”. Apesar de proibida pela Anvisa, agência reguladora vinculada ao Ministério da Saúde, a venda de medicamentos pela internet também corre solta. Basta digitar no Google as palavras “venda online tarja preta” e uma ampla gama de sites aparecem oferecendo todo o tipo de remédio.

Considerando que todos estes medicamentos são controlados por prescrição médica, o aumento em suas vendas, em tese, estaria relacionado a um maior número de pacientes. Numa matemática simples: mais gente doente, mais venda de remédio. Será? Compartilho com vocês as minhas dúvidas.

Há exatamente um ano, em março de 2020, a Anvisa publicou uma resolução, com duração de seis meses, que amplia a quantidade máxima de medicamento permitidos em uma única receita dos atuais dois meses para até seis meses. Em setembro, quando a portaria estava perto de vencer, ela foi estendida enquanto durar a pandemia. Com menos de 5% da população vacinada e a circulação de novas cepas, é de se supor que a nova portaria continuará em vigor por muitos meses.

A mesma resolução passa a permitir a entrega em casa de medicamentos sujeitos a controle especial. A lista com as novas regras inclui antidepressivos, antipsicóticos, anticonvulsivantes, anfetaminas e ansiolíticos. Na prática, o médico prescreve, por exemplo, uma caixa e o paciente pode comprar até seis unidades.

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E aí entra em cena um outro vértice dessa história. Pacientes tem relatado, à miúde, a falta de exigência de receita para comprar medicamentos. Algumas farmácias no Rio chegam a ligar para clientes frequentes oferecendo este ou aquele remédio. Tudo leva a crer que esteja havendo uma diferença entre quantidade de caixas de medicamentos que as receitas médicas autorizam comprar e o que os pacientes compram de fato. Essa diferença estaria sendo comercializada numa nova variação de mercado irregular. Soma-se a isso o traço cultural de que vivemos em uma sociedade que tem o hábito de se automedicar e forma-se uma combinação bombástica: oferta alta para atender uma demanda constante. Um convite ao uso abusivo e porta de entrada para a dependência.

O consumo irracional tanto de remédios controlados pode trazer consequências graves: de tonteira a depressão, passando por amnésia e diminuição da coordenação motora. A ampla maioria dos suicídios ocorre em pacientes deprimidos, bipolares, dependentes químicos e esquizofrênicos. Imaginar que esses pacientes terão à sua disposição, de uma só tacada, seis ou mais caixas de antidepressivos ou reguladores de humor é colocá-los em risco iminente. Frequentemente coloco em minhas receitas uma recomendação de que o farmacêutico só venda medicação suficiente para um número específico de dias de tratamento. Em vão. Os próprios pacientes me relatam que algumas drogarias cariocas insistem em empurrar mais caixas aos clientes.

Por tudo isso, o aumento nas vendas de medicamentos atestado pelo Conselho Federal de Farmácias não significa, necessariamente, um acréscimo do engajamento de pacientes a novos tratamentos – ao contrário, pode ser o indício de uma comercialização criminosa. Cabe aos órgãos competentes de controle aumentarem a vigilância pelo bem da saúde dos brasileiros.

Analice Gigliotti é Mestre em Psiquiatria pela Unifesp; professora da Escola Médica de Pós-Graduação da PUC-Rio; chefe do setor de Dependências Químicas e Comportamentais da Santa Casa do Rio de Janeiro e diretora do Espaço Clif de Psiquiatria e Dependência Química.

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