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Por Analice Gigliotti, Elizabeth Carneiro e Sabrina Presman
Psiquiatria
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Pandemia: os riscos do excesso de bebida alcoólica durante a tormenta

Tragédias de proporções tão traumáticas à sociedade como a corrente pandemia apontam os riscos do consumo abusivo de álcool

Por Analice Gigliotti
Atualizado em 15 abr 2020, 17h05 - Publicado em 15 abr 2020, 15h58

Médicos e cientistas tem definido o enfrentamento ao novo coronavírus como “trocar o pneu de um caminhão descendo a ladeira”. Não há exagero na metáfora. É preciso descobrir uma cura ao mesmo tempo em que se ganha entendimento sobre a doença. Definitivamente, não é das missões mais fáceis. O desafio de achar respostas enquanto ainda estamos formulando as perguntas pode dar, às vezes, a sensação de estarmos às cegas, especialmente diante das autoridades batendo cabeça sobre a gravidade da pandemia e as maneiras mais eficientes de combatê-la. Mas algumas conclusões já podem ser deduzidas a partir da experiência prévia da ciência. Eventos como o Furação Katrina, em 2005, e o ataque terrorista às Torres Gêmeas, em 2001, ambos de proporções tão traumáticas à sociedade como a corrente pandemia, nos apontam, por exemplo, alguns possíveis caminhos sobre os riscos do consumo abusivo de álcool.

A epidemiologista Magdalena Cerdá, da Universidade de Nova York, concluiu em suas pesquisas que sobreviventes ao trauma do Katrina tinham cinco vezes mais risco de dependência de álcool. Quem ficou exposto à situações estressantes nas semanas seguintes, começou a beber pelo menos três unidades de álcool (ou seja, três taças de vinho ou três latas de cerveja, por exemplo) a mais do que já estava acostumado.

Deborah Hasin, professora da Universidade de Columbia, em Nova York, se dedicou a descobrir a relação do uso de bebida alcóolica e o atentado às Torres Gêmeas, em 2001. Ela chegou a três conclusões. Primeiro, Deborah descobriu em suas pesquisas que as pessoas que tiveram experiência de estresse em maior grau e já tinham problemas com bebidas passaram a consumi-las em maior quantidade. A segunda conclusão é que o mesmo aconteceu com os indivíduos que tinham o habito de beber para relaxar, sem relação com dependência: estes também passaram a beber significativamente mais. A terceira conclusão foi que quanto mais intensa era a exposição de um indivíduo ao ataque terrorista, maiores eram suas chances de beber compulsivamente a longo prazo: até seis anos após o trauma.

Portanto, as duas pesquisas americanas nos fazem supor, com alguma precisão, que haverá aumento de consumo de álcool porque estamos vivendo um trauma coletivo. A Organização Mundial de Saúde (OMS) acaba de reiterar esta percepção ao recomendar que os governos sejam mais duros com as regras para o consumo de bebida alcoólica durante a quarentena. “Pessoas com tendência ao consumo abusivo estão especialmente vulneráveis, principalmente em autoisolamento”, afirma a entidade de saúde. Tal vulnerabilidade é consequência da solidão, da perda de controle, do medo da morte e de perdas financeiras, para falar apenas de alguns fatores de stress. E quais as consequências disso?

Os dependentes de álcool que bebiam às escondidas ou na rua com amigos e no happy hour, se verão obrigados a estocar bebida em casa, longe dos olhos dos familiares. Automaticamente isso aumenta os conflitos domésticos e, provavelmente, explica parte do aumento da violência contra as mulheres, já constatado pela polícia. Entre os que não tinham o hábito de beber em casa ou só o faziam de vez em quando, não terão outra opção a não ser consumir a bebida em em seu domicílio, onde o acesso é fácil. Esses fatores explicarão a escalada para um abuso maior de álcool ou até novos casos de dependência. O preocupante é que o álcool diminui a resposta imunológica do organismo e nos deixa mais expostos a infecções, pneumonias e outras síndromes respiratórias graves, que são precisamente as coisas que mais tememos quando nos infectamos com Covid-19.

Segundo pesquisa da Nielsen, a venda de bebida alcoólica em março subiu 55% nos Estados Unidos, se comparado ao mesmo período do ano passado. O mesmo se passou no Brasil e em outros países do mundo. Mas aumento da venda não se traduz, necessariamente, em aumento do consumo. Pelo menos, ainda. Uma das hipóteses razoáveis é que os compradores estejam estocando já que, curiosamente, bebida alcoólica é considerada produto essencial nos Estados Unidos e continua sendo produzida normalmente, apesar do isolamento social. A bem da verdade, retirá-la da lista de itens essenciais seria de pouca utilidade, pois rapidamente se estabeleceria um comercio ilegal, assim como nos tempos da Lei Seca dos anos 1920, além do perigo de aglomerações irregulares de pessoas, um dos maiores riscos da atual pandemia.

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E por que, afinal, o álcool é tão procurado em momentos de estresse agudo, como Katrina, 11 de setembro e pandemia?

O álcool é um aparente redutor da ansiedade. E não há dúvidas que estamos vivendo dias estressantes com tantas incertezas sobre o futuro. O convívio familiar forçado, a distância imposta aos idosos e a saudade de parentes e amigos. Tudo isso já é uma realidade nos consultórios terapêuticos e psiquiátricos.

O álcool estimula o centro de recompensa cerebral, liberando a dopamina e, com isso, atingindo uma sensação de prazer. No caso específico do estresse, o álcool também estimula a neurotransmissão GABA e inibe a neurotransmissão glutamato. Mas no uso continuado de derivados etílicos, esse processo se inverte: a neurotransmissão GABA fica menor e a neurotransmissão glutamato fica maior. Traduzindo o “biologês”: o resultado é um aumento da sensação de estresse e da ansiedade. Na verdade, o álcool é um péssimo ansiolítico. Para curar-se do mal, toma-se o veneno. Resumindo: um tiro no pé.

E pior: o consumo contínuo de álcool aumenta os níveis de cortisol, o hormônio do stress. É uma falácia acreditar que um dependente dessa substância é um hedonista, que vive pelo prazer. Ele vive em intenso sofrimento e as situações de maior tensão desencadeiam maior compulsão para beber, criando-se um ciclo vicioso. Neste cenário, o que nos aguarda? Podemos ter novos adictos a álcool, e alguns alcoolistas, que estavam abstinentes, tendem a recaídas.

As reuniões de AA e outros grupos de apoio a dependentes de álcool continuam existindo, agora on-line. Instituições como a Associação Brasileira de Estudos do Álcool e outras Drogas (ABEAD) estão oferecendo apoio psicológico virtual gratuito a essa população. Esses meios de suporte têm boa adesão, mas nem todos se sentem confortáveis.

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Por outro lado, o isolamento social pode acabar sendo benéfico para alguns alcoolistas. A ausência de estímulos condicionados externos – a festa, os amigos e toda a entourage que o consumo de álcool condiciona – pode facilitar a abstinência. Para alguns pacientes tem sido uma excelente oportunidade de parar ou reduzir o consumo de bebida, e isso esta acontecendo.

Maniqueísmo, histeria e alarmismo não contribuem em nada em momentos como este. O que vale para uma pessoa não necessariamente vale para outra. O próprio Instituto Nacional para Abuso do Álcool e Alcoolismo, nos Estados Unidos, pontua que não há evidência de prejuízo ao sistema imunológico do consumo de até uma dose por dia para mulheres ou duas doses por dia para homens. Mas atenção: alcoolistas, infelizmente, não conseguem controlar o consumo.

O desafio de achar respostas enquanto ainda estamos formulando as perguntas pode dar a sensação de estarmos às cegas, mas nem sempre: o governo australiano restringiu a compra de bebida alcoólica a algumas unidades por dia para prevenir o consumo excessivo e, como consequência, uma eventual sobrecarga do sistema de saúde, que não pode ser desperdiçado com outras doenças em momentos de pandemia.

Tenhamos bom senso e força de vontade. Quando tudo isso passar, estaremos vivos e saudáveis para brindarmos ao final da pandemia.

Analice Gigliotti é Mestre em Psiquiatria pela Unifesp; professora da Escola Médica de Pós-Graduação da PUC-Rio; chefe do setor de Dependências Químicas e Comportamentais da Santa Casa do Rio de Janeiro e diretora do Espaço Clif de Psiquiatria e Dependência Química.

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