Pandemia à beira-mar
O brasileiro tem comportamentos contraditórios durante o isolamento social

Milhares de cariocas estenderam as cangas nas longas faixa de areia da cidade neste primeiro domingo de inverno e aproveitaram o sol ameno da estação. Outros preferiram reencontrar a cerveja de garrafa na famosa mureta da Urca. A festa de Reveillon do Rio está ameaçada de ser cancelada, o Carnaval será postergado, mas alguns cariocas se acham no direito de furar o isolamento por um domingo de sol. Cada um se sentiu habilitado a ceder “um pouquinho” – só um mergulhinho, só uma cervejinha, só uma voltinha – no isolamento social, única garantia concreta no controle sobre a transmissão do vírus. Quando cada um cede “um pouquinho”, o que se vê são praias, parques, ruas e praças lotadas como no último final de semana. É como se depois de 90 dias em casa, a saturação nos levasse a um estado de negacionismo, ainda que não saibamos a extensão da crise sanitária no Brasil.
Mas enquanto alguns se banham, outros morrem. O Brasil coleciona tristes números nessa pandemia. Somos a segunda nação do mundo em número de casos e de mortes – mais de um milhão de casos notificados e os óbitos ultrapassam os 50 mil – perdendo apenas para os Estados Unidos. A OMS alertou para o fato de que 12% dos infectados no Brasil são da área da saúde e somos o país com maior número na perda de vidas destes profissionais, chegando à terrível marca de 329 pessoas.
A pandemia expos a realidade da classe profissional que está na linha de frente no combate ao vírus e em prol da vida. A Covid-19 desnudou a precariedade das condições de trabalho dos profissionais de saúde, uma carência que remonta a décadas de descaso com o SUS.
Além disso, está sendo uma oportunidade ímpar para o público entender o modus operandi da ciência. Aos poucos, termos como epidemiologia, taxas de letalidade e infectividade ou notificação epidemiológica se tornaram familiares nos lares do Brasil. Informações que fazem parte do dia a dia dos profissionais da ciência, como as fases que compõem a pesquisa de uma nova vacina agora são assistidas em tempo real pela mídia. Os leigos agora conhecem o incansável processo de checar e rechecar evidências científicas, nunca entendidas totalmente como definitivas, sempre abertas ao espaço do contraditório ou de um dado novo. O debate em torno da eficácia da hidroxicloroquina, que aconteceram aos olhos do público, são o dia a dia de quem faz Medicina e escancarou a inegável importância de estudos de qualidade como balizadores para o uso (ou não) de um medicamento, seus efeitos terapêuticos e eventuais efeitos colaterais.
A pandemia vai passar. Se a ciência, a medicina, o sistema de saúde e seus profissionais saírem mais valorizados após tudo isso, não terá sido em vão processo tão longo e desgastante. Será o momento em que todos – e não somente alguns autoeleitos – poderão aproveitar novamente os domingos de sol na praia.
Analice Gigliotti é Mestre em Psiquiatria pela Unifesp; professora da Escola Médica de Pós-Graduação da PUC-Rio; chefe do setor de Dependências Químicas e Comportamentais da Santa Casa do Rio de Janeiro e diretora do Espaço Clif de Psiquiatria e Dependência Química.