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Por Analice Gigliotti, Elizabeth Carneiro e Sabrina Presman
Psiquiatria
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Maconha medicinal ou canabidiol medicinal: você defende a causa certa?

A sociedade não pode se deixar levar pelo embaçamento construído para atender interesses comerciais

Por Elizabeth Carneiro
Atualizado em 18 ago 2020, 10h14 - Publicado em 18 ago 2020, 09h11

Quando se fala em legalização das drogas, há que se mencionar as múltiplas forças que atuam nos bastidores. De um lado, um emaranhado entre o oportunismo e interesse. De outro, grupos com intenções e necessidades coerentes e legítimas. A confusão é conveniente para alguns. Graças a ela, as pessoas são mais superficiais na expressão de suas supostas “opiniões”, por vezes se engajando em discursos “pró” ou “contra” algo, sobre os quais estão pouco esclarecidos para quê e por quem estão lutando, de fato. Assim, uma discussão que exige flexibilidade para a análise de cada aspecto torna-se uma grande marcha de “times” oponentes.

Talvez a expressão “luta contra as drogas” seja percebida como algo tão opressor que o instinto, imediatamente, nos conduz à ideia de que é “proibido proibir”, sem separar o joio do trigo. Então, minha sugestão para a leitura deste artigo é que coloquemos nossas armas no chão e, por alguns minutos, pensemos que “não há lado”: comungamos do desejo de mais saúde física e mental para todos.

O desejo de anestesiar-se frente à realidade da vida existe desde os primórdios da Humanidade: as formas de busca de prazer e/ou alívio das emoções desconfortáveis só vão mudando de modalidade, de tempos em tempos. Isso é natural e com um pouco mais de compaixão conosco e sem julgamento moral, podemos concordar que não é fácil viver, seja pelo estresse do cotidiano, pela desestruturação familiar ou por problemas de saúde. Inúmeras vezes não queremos “estar aqui”, vivendo o tal presente – que hoje tanto se valoriza. Se desconectar da realidade, seja para um hiato na dor, alívio do desprazer, ou mera busca de experiências que parecem agradáveis, são desejos naturais. O que precisamos saber é se os adultos desejam que os jovens paguem os possíveis preços altos destas escolhas.

A discussão acalorada sobre a legalização da maconha tem como pauta a liberdade do indivíduo de decidir sobre sua própria vida, acreditando que o poder do Estado não pode interferir em sua autonomia. O problema está exatamente aí. O que para alguns é visto como liberdade e autonomia, é percebido por muitos especialistas em saúde como uma força de paralisação, em consequência do efeito letárgico da maconha. A isso, soma-se a falsa percepção de baixo risco da maconha, já que seu uso não está relacionado diretamente à arruaças, homicídios ou situações que ocupam a primeira pagina dos jornais.

O que poucos acreditam, pela conveniência psíquica da ignorância – já que isso é frequentemente alertado – é que uma droga que carrega a fama de ser “mais leve”, seja capaz de causar “síndrome amotivacional”, ou seja, uma “falta de apetite” pela vida, com menor produtividade. O processo é tão sutil e silencioso, que o individuo começa a transformar-se sem perceber, chegando a se descrever, depois de um tempo de uso, com características surgidas a partir do uso da maconha. O uso de maconha aumenta em oito vezes a chance uma pessoa ter um surto psicótico, chegando a um quadro de comprometimento do futuro produtivo do usuário. Portanto, insistir que a maconha é uma droga leve é uma questão de perspectiva.

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A violência em decorrência do tráfico de drogas é um forte argumento trazido pelos defensores da legalização. As experiências do Uruguai e de alguns estado americanos, por exemplo, mostram um caminho curioso: drogas legalizadas são taxadas pelo governo, tem seu preço aumentado e a quantidade de venda controlada. O que a liderança do tráfico faz então? Cria o mercado paralelo para os consumidores de alta escala. Afinal de contas, traficantes não viram trabalhadores formais que lutarão por um ou dois salários mínimos por mês. A transgressão e a maldade humana continuarão existindo. A criatividade para vender drogas, criar novas formas de golpes por WhatsApp, cartão de crédito ou mesmo sequestros e assaltos com violência: nada disso deixará de existir só porque a maconha estaria legalizada.

A preocupação dos especialistas não é com aquele nosso amigo que funciona bem uma vida inteira usando maconha apenas na hora de dormir ou com aquele outro que dá tragos em festinhas. Nossa preocupação é de saúde pública.

Quais as drogas mais consumidas no mundo? As lícitas: tabaco e álcool. São elas a porta de entrada para o uso de drogas ilícitas. E por que? Pelo simples fato de que as famílias e a sociedade, direta ou indiretamente, assumem ser aceitável fumar e beber. Em casa, nas ruas, nas festas. Ou seja, quanto mais disponível e aceitável socialmente é uma substância, mais chances de ela circular e aumentar o número de dependentes pelo simples fato de tornar-se lícita. Hoje a maconha é a droga ilícita mais consumida do mundo. Imagine se for legalizada.

Inúmeros adolescentes questionam os pais sobre a diferença entre a cerveja do adulto e a maconha do jovem – e a hipocrisia que há nisso. Eles tem razão sobre o fato de não haver tanta diferença. A verdadeira diferença está no fato de que este ano, por exemplo, quatro milhões de pessoas morreram por consequências do uso de álcool e tabaco e que a mortes por uso de substâncias ilícitas, por ano, circulam em torno de 600 mil. O fato de não termos força cultural e financeira para controlar o uso do álcool não significa que precisamos falhar novamente e repetir um caminho de aumento progressivo de número de dependentes em maconha, expondo os jovens à inatividade, desconexão com a realidade e interferências acadêmicas, familiares e afetivas.

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No caso do tabaco, o mundo se uniu em campanhas de redução de consumo. No Brasil, houve uma diminuição de 30% de usuários. Portanto, é importante estar atento à como a indústria do tabaco está se organizando para resgatar a gigantesca lucratividade perdida. Se por um lado, o consumo de cigarro diminuiu, por outro explodiu o acesso ao novo produto vaper, que pode ser consumido tanto com tabaco quanto com maconha, sem chamar a atenção dos adultos, visto que não exala o cheiro característico. Portanto, por trás do movimento de legalização de drogas está uma força filosófica sobre a liberdade humana ou já existe uma estratégia industrial para faturar em cima das nossas vulnerabilidades?

O uso medicinal da maconha é outro ponto de grande confusão proposital que deixa lacunas interpretativas. Não há evidência científica de que maconha fumada de forma recreativa resulte em qualquer benefício para a saúde. O que existe é o uso oral e nasal do canabidiol extraído da maconha. O “barato” sentido ao se consumir maconha vem da substância THC, o mesmo responsável por muitas das consequências negativas da maconha. THC e canabidiol tem forças opostas em nosso cérebro. No Mal de Parkinson já há evidência de que o canabidiol oral ocasiona uma diminuição dos sintomas típicos da doença, traz melhora na qualidade de vida e do sono; no autismo infantil também já existem evidências semelhantes e o mesmo pode ser dito nos cuidados paliativos em pacientes oncológicos, de esclerose múltipla e Alzheimer. Isso tudo é uma ótima notícia, sem dúvida. Mas não se trata de maconha, e sim de canabidiol oral.

Então não se engane: as evidências científicas tão valorizadas diante da epidemia do coranavírus, precisam também serem levadas a sério na questão do uso da maconha. A sociedade não pode se deixar levar pelo embaçamento construído para atender interesses comerciais.

O preço a ser pago é a saúde física e a integridade psíquica de gerações de jovens, as atuais e as futuras.

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Elizabeth Carneiro é psicóloga supervisora do Setor de Dependência Química e Outros Transtornos do Impulso da Santa Casa do Rio, especialista em Psicoterapia Breve e Terapia Familiar Sistêmica, diretora do Espaço Clif de Psiquiatria e Dependência Química e treinadora oficial pela Universidade do Novo México em Entrevista Motivacional.

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