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Por Analice Gigliotti, Elizabeth Carneiro e Sabrina Presman
Psiquiatria
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Gilberto Braga, Nelson Freire e Leandro Moreira: qual “o lugar” de um gay?

Sociedade tem facilidade em aceitar um gay artista, mas não motorista de ônibus

Por Analice Gigliotti
Atualizado em 5 nov 2021, 10h37 - Publicado em 5 nov 2021, 10h17

Nos últimos dias, o Brasil de despediu de dois artistas geniais. Gilberto Braga, o grande autor de novelas e séries, soube retratar nas tramas o espírito do seu tempo. Os hábitos (e preconceitos) da elite carioca, seu estilo de vida e vocabulário ajudaram a educar a sociedade brasileira sobre si mesma. Trabalhos antológicos, como “Dancin Days”, “Vale Tudo”, “Anos Dourados” e “Anos Rebeldes” estão em qualquer lista de melhores momentos da televisão brasileira. A segunda perda lamentável foi Nelson Freire. Um dos maiores pianistas do mundo, apontado como um dos melhores do século XX, Freire mostrou sua genialidade desde criança e frequentou as grandes casas de concerto dos Estados Unidos e Europa, sempre ovacionado por longos e justos minutos.

Além de artistas brasileiros notáveis, Gilberto e Nelson tinham outra coisa em comum: eram gays. O decorador Edgar Moura Brasil estava casado com Gilberto Braga há quase 50 anos. Freire era casado com o médico Miguel Rosário e vivia a relação com a mesma discrição mineira com que lidava com tudo em sua vida, à exceção de sua arte. Os dois casais eram respeitados pela sociedade e frequentavam as melhores rodas. Pertencentes a uma elite intelectual, vivam suas orientações sexuais com absoluta normalidade, sem precisarem encarar qualquer questionamento acerca disso.

Leandro Moreira, não. Leandro Moreira enfrenta outra realidade. Talvez o leitor não esteja associando o nome de Leandro Moreira a nenhum artista. O leitor está certo. Leandro Moreira não é artista. É motorista de ônibus no Rio de Janeiro. Ele viralizou na internet depois que postou um vídeo em que respondia, com humor e inteligência, ao questionamento de uma passageira. Ao ver que um fiscal do ponto o abordava com intimidade, chamando-o de “bebê”, a incauta passageira o alertou. “Ele te chamou de bebê? E o senhor deixa? Porque os outros podem achar que você é gay…”, disse ela. “Mas eu sou gay mesmo!”, respondeu ele. “E como é que o senhor dirige ônibus sendo gay?”, questionou a passageira. Dando aula de fairplay, Leandro foi certeiro: “Dirijo dando pinta!”, debochou.

Na cabeça dessa passageira – e sabe lá de quantas outras pessoas – um gay pode escrever novela. Pode tocar piano. Pode se vestir de mulher e fazer graça, como fazia brilhantemente Paulo Gustavo, para lembrar de outro gay recém-falecido. Um gay pode até se assumir na política, como fez recentemente o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, num gesto de coragem para quem pretende se lançar candidato à presidência do Brasil, país que mais mata homossexuais no mundo. Mas para mentalidades limitadas como a da passageira, um gay jamais irá dirigir um ônibus. Talvez também não faça obra civil. Dificilmente irá encarar a labuta de empresas de mudanças. A passageira deve supor que qualquer função que demande força física não é “lugar” de um gay, é destinada exclusivamente aos heterossexuais.

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Espanta que um pensamento como este ainda seja possível em pleno 2021 mas, ao mesmo tempo, escancara um preconceito obtuso. O mais tocante nesta história do motorista Leandro é a maneira leve e educativa com que reagiu à ignorância alheia. Ele poderia procurar uma delegacia, dar queixa, abrir inquérito, recorrer às vias judiciais cabíveis. Teria todas as razões para isso. No entanto, a segurança com que soube levar a situação na esportiva – e fazer troça dela – só é possível entre aqueles que se sentem bem na própria pele. Leandro Moreira é claramente um gay feliz. Não é uma passageira homofóbica que irá tirar a sua paz. Esse amor próprio e autoestima impactam e transformam. No país do cultivo irracional ao ódio, é muito.

Analice Gigliotti é Mestre em Psiquiatria pela Unifesp; professora da PUC-Rio; chefe do setor de Dependências Químicas e Comportamentais da Santa Casa do Rio de Janeiro e diretora do Espaço Clif de Psiquiatria e Dependência Química.

 

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