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Por Analice Gigliotti, Elizabeth Carneiro e Sabrina Presman
Psiquiatria
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Você sabe o que é FOPO?

O medo do que os outros vão pensar pode ser uma tomada de consciência crítica, um amadurecimento do uso das redes a partir do autoconhecimento

Por Analice Gigliotti
Atualizado em 6 out 2020, 19h59 - Publicado em 6 out 2020, 17h36

Já deve ter acontecido com você: ao testemunhar uma cena inusitada ou se revoltar com algum fato, você arrisca a escrever um post fazendo um comentário ou um desabafo. Mas antes de apertar o botão “publicar”, você para, pensa, reflete sobre todas as possíveis respostas que irá receber sobre aquele post, todos os julgamentos de que será alvo e acaba apagando e desistindo. Se identificou? Pois bem, saiba que você não está sozinho.

O comportamento é tão recorrente que o médico americano Michael Gervais o batizou como FOPO, ou seja, um receio ou “medo da opinião dos outros” (fear of other people’s opinion, no original em inglês). Trata-se de uma obsessão irracional, improdutiva e prejudicial, que faz com que os indivíduos deixem de agir de acordo com seus valores e crenças.

Mas como essa novidade se insere num mundo que, cada vez mais, mede as pessoas pelos seu número de seguidores e pela lógica do – perdão, Descartes – “posto, logo existo”?

Vale a pena voltarmos um pouco no tempo e refletirmos sobre o conceito das redes sociais. Inicialmente, elas não foram pensadas como plataforma de compartilhamento em tempo real de cada passo do dia a dia das pessoas. O finado Orkut era sucesso porque as pessoas se encontravam por afinidade no que se denominou “comunidades”: fãs de um determinado artista ou interesse em comum por certo assunto. Anos depois, Facebook e Instagram andaram algumas casas à frente nesse tabuleiro perverso de exposição da vida privada com a popularização do verbo “compartilhar”. Compartilha-se de tudo, a todo o momento. Detalhes de vidas comezinhas, testemunhados por todos. O ápice talvez tenha sido a criação dos stories, utilizados como um verdadeiro diário visual da rotina prosaica de cada um. Nessa toada, nos acostumamos ao voyeurismo consentido que as redes oferecem.

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O dado novo nessa história é a cultura do cancelamento. Até pouco tempo, era a imprensa e os veículos de mídia que ditavam as regras. Mas isso acabou. A internet virou uma praça pública de julgamentos (e condenações). Num piscar de olhos, pode-se perder seguidores, engajamento e todas essas outras expressões que, até bem pouco tempo, não faziam parte do nosso vocabulário diário. A velha máxima do “quem fala o que quer, ouve o que não quer” dominou as relações sociais. Os haters proliferaram em grande velocidade. E aí chegamos ao medo da opinião dos outros, ou FOPO. A tensão de ser cancelado compromete o bom senso. Sob a pressão do medo, até o que parece certo corre o perigo de soar errado. A pandemia trouxe uma instabilidade a mais na cartilha do que “pode” e o que “não pode” ser postado, já que as formas como cada um enfrentou esse duro momento foram muito diferentes.

Sou uma usuária rara de redes sociais. Mais do que geracional, é uma questão científica. Há anos sei que elas não formam pessoas. Ao contrário, criam perversas bolhas alinhadas por opiniões semelhantes. Por isso não me balizo pelas redes: elas não mostram a verdade de ninguém, para quem quer se seja.

Meus posts são bissextos, restritos a compartilhar artigos e lives profissionais. Acredito que vida pessoal é pessoal. E é justamente por pensar assim que, como psiquiatra, acompanho com algum contentamento o atual momento. O FOPO seria o outro lado da moeda da vida hiperexposta das redes sociais. O desejo de mostrar uma versão falsa de si mesmo é tão intenso que a pessoa se achata, se anula. É quando seu referencial está integralmente fora de si e o individuo perde a consciência de quem ele é. “Fiz de mim o que não soube/ E o que podia fazer de mim não o fiz/ O dominó que vesti era errado/ Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me/ Quando quis tirar a máscara, estava pegada à cara”, escreveu o genial poeta Fernando Pessoa, no clássico “Tabacaria”. O poema soa ainda mais atual do que quando foi escrito, em 1928, portanto há quase 100 anos: a quantidade de gente que perdeu a consciência de quem era ao vestir uma máscara social nas redes é tristemente gigantesca.

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Por outro lado, não podemos viver como se não fossemos os animais sociais que somos. Cerca de 80% dos nossos processos cerebrais se dão nas relações interpessoais. E é no seio dessa dependência – originalmente da figura materna – que desenvolvemos nossa capacidade de aprendizado.

Não agir por impulso e parar para pensar nas consequências de uma postagem me parece bastante saudável. Assim como não falamos o que queremos na cara das pessoas, o mesmo comportamento deve ser reproduzido nas redes. Trata-se de educação, artigo tão raro quanto fundamental, seja na vida real ou virtual. Ter algum medo do que os outros vão pensar pode ser interpretado como uma tomada de consciência crítica, um amadurecimento do uso das redes a partir do autoconhecimento.

O FOPO é um convite a viver todas as experiências da vida com mais autenticidade e comedimento: da porta para dentro, onde interessa, e não para a plateia. O grande autor argentino Jorge Luis Borges escreveu que “quem contempla desapaixonadamente, não contempla”. Que assim seja e que o temor diante do que os outros vão pensar nos estimule à verdade com que vivemos cada momento.

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Analice Gigliotti é Mestre em Psiquiatria pela Unifesp; professora da Escola Médica de Pós-Graduação da PUC-Rio; chefe do setor de Dependências Químicas e Comportamentais da Santa Casa do Rio de Janeiro e diretora do Espaço Clif de Psiquiatria e Dependência Química.

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