A “indesejada das gentes”: o direito de escolha
O debate sobre decidir o momento e a forma de morrer ganha cada vez mais espaço em diversos países
Este 2020, cujo fim se aproxima, foi marcado pela morte. Temida ou evitada, ela permeou todas as rodas de conversa. O surgimento da pandemia fez com que cruzássemos os meses contando a morte aos milhares. Teria o coronavírus o poder de mudar nosso entendimento da morte? Indo além: no ano em que tantos morreram à revelia, como respeitar o direito fundamental daqueles que desejam decidir sobre o seu próprio fim?
Antes de mais nada, convém deixar claro que não tenho a pretensão de sentenciar o que está certo ou errado nessa matéria. Para além de ser uma decisão de foro íntimo, há muitas questões implicadas quando o assunto é colocar um ponto final na própria vida: dilemas éticos, morais, jurídicos, médicos e comerciais. O que interessa-me mais nesse debate é o ponto de vista humanista: o direito (ou não) de escolha sobre o momento e a forma que se deseja morrer.
O homem é o único animal que sabe que vai morrer. A consciência da finitude acarreta sentimentos de impotência e incerteza. Nossa reação natural é falarmos sobre a morte como se este fosse um assunto que não nos tocasse. A morte – natural ou não – é um processo. E é sobre estes momentos que a morte é uma escolha do indivíduo que me interessam neste artigo.
Convém esclarecer três conceitos que orbitam em torno da morte digna: eutanásia, suicídio assistido e ortotanásia. A eutanásia – cuja origem etimológica é eu (boa) thanatos (morte) – é a antecipação da morte de alguém, provocada por compaixão, com o objetivo de se evitar um fim lento e doloroso fruto de alguma doença incurável. O chamado suicídio assistido, que em geral ocorre em situação similar, é exercido com o auxílio de um médico que pode disponibilizar ao doente não só as informações, mas também os meios para o suicídio, incluindo orientação e fornecimento de doses letais de fármacos. Cabe ressaltar que nesses casos é exigida uma triagem psiquiátrica para confirmar tratar-se de um paciente grave e não de alguém com transtorno mental. Já a ortotanásia consiste em aliviar o sofrimento de um doente terminal através da suspensão de tratamentos que prolongam a vida mas não curam nem melhoram a enfermidade.
São vários os dilemas éticos levantados. A quem o médico serve: ao paciente ou à Medicina? Até que ponto podemos prolongar a vida de quem não deseja mais viver? Seria ético um médico abreviar a vida de alguém? E seria ético se recusar a fazê-lo? A quem cabe arbitrar sobre a hora certa da morrer?
Independente de polêmicas, este é um tema que todas as sociedades terão que olhar de frente. A eutanásia e o suicídio assistido existem em diversos países. O mais recente a aderir à política foi a Alemanha, em fevereiro deste ano. Portugal, Estados Unidos, Espanha e Itália estão em discussão avançada sobre o tema. Se avançarem, se juntam à Holanda, Bélgica, Luxemburgo, Colômbia e Canadá a disporem de critérios regulatórios para a prática da “morte digna”. Um movimento aparentemente incontornável no mundo. Enquanto isso, no Brasil a eutanásia é entendida como crime de homicídio e ilícito ético frente à regulamentação do Conselho Federal de Medicina. Tal percepção não tende a mudar a curto prazo por causa da religião.
No lindo poema “Consoada”, Manuel Bandeira definiu a morte como “a indesejada das gentes”. Publicado há quase um século, o poeta não supôs que, dependendo do caso, a “indesejada” poderia ser “a desejada”. Seja lá como for, que quando chegue a “iniludível” (ainda na definição do grande Bandeira), que encontre “lavrado o campo, a casa limpa e a mesa posta, com cada coisa em seu lugar”.
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Se você ficou interessado em saber mais, “Morrer ou não morrer: eis a questão” é o tema de uma palestra online que acontecerá na página da Clínica Espaço Clif no Facebook, na próxima 4a feira, 14 de outubro, às 20h, mediada por mim e com a participação da psicóloga Karen Scavacini, do psiquiatra José Manoel Bertolote e da advogada Luciana Dadalto. Mais informações nas páginas da Espaço Clif no Instagram e no Facebook.
Analice Gigliotti é Mestre em Psiquiatria pela Unifesp; professora da Escola Médica de Pós-Graduação da PUC-Rio; chefe do setor de Dependências Químicas e Comportamentais da Santa Casa do Rio de Janeiro e diretora do Espaço Clif de Psiquiatria e Dependência Química.