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Por Analice Gigliotti, Elizabeth Carneiro e Sabrina Presman
Psiquiatria
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Coronavírus: pandemia, paranoia e redenção

Em tempos delicados como este, a população se une exatamente ao se afastar

Por Analice Gigliotti
Atualizado em 16 mar 2020, 16h46 - Publicado em 16 mar 2020, 16h46

Nas próximas duas semanas, a cidade do Rio terá o coronavírus circulando livremente e em quatro semanas devemos ter uma epidemia. A informação é do Secretário Estadual de Saúde do Rio, Edmar Santos, em palestra na Academia Nacional de Medicina, semana passada. O vírus é democrático: se alastra do gabinete do presidente ao comerciante da esquina. Grande parte da população será infectada, e os esforços têm se concentrado em evitar que haja um contigente massivo de infecção a curto prazo, tornando impossível o tratamento da população com sobrecarga na rede pública de atendimento. As férias dos profissionais de saúde, por exemplo, foram suspensas.

Fico imaginando, como num filme de Hollywood, um enorme vírus descendo numa nave espacial (em Manhattan, como sempre), e a população de todo o mundo unida para combater o inimigo comum. Mas o curioso é que, nesse caso, a população se une, ao se afastar. Escrevi recentemente sobre como a internet adoece os jovens mas agora cito o quanto a realidade virtual pode nos salvar. Consultas psicológicas já começam a ser feitas on-line: o trabalho é feito de casa.

Trabalho com tratamento de adictos. Redutores de danos costumam entender, por exemplo, que impedir os pacientes de fumar dentro dos Centros de Tratamento de Álcool e Drogas seria “Controle dos Corpos”, como diz Foucault. Mas aqui, nessa pandemia, o Estado fechar escolas, teatros ou museus, não é suficiente. Nós também precisamos controlar nossos corpos: onde tocamos, em quem, em que parte do nosso próprio corpo. Difícil. Nesses caso, nosso corpo precisa ser dócil para com o Estado, e alerta para consigo mesmo.

Na psiquiatria, sabemos que no pânico ou na paranoia, o “inimigo” está do lado de fora. Mas solidão, restrição de vida social e isolamento podem dar a sensação que o “inimigo” está do lado de dentro. O importante é entender que o inimigo não está nem fora, nem dentro: é respeitar que existe uma epidemia e que temos que cuidar uns dos outros.

A quarentena pode levar a consequências de longo prazo. Artigo recém-publicado na prestigiada revista Lancet fez ampla revisão a respeito do assunto. Entre os profissionais de saúde, mesmo três anos após o surto de SARS, em 2003, houve maior incidência de abuso de álcool ou de sintomas de dependência alcoólica. O estigma em relação aqueles que se contaminaram (pasmem, mas isto pode ocorrer) pode perdurar ainda por um tempo mesmo após a quarentena, contribuindo para o sentimento de isolamento.

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O fato é que o coronavírus está obrigando todos nós a revermos nossas rotinas, a interrompermos o ciclo do Mito de Sísifo que vive dentro de cada um, num eterno carregar de pedras, pouco reflexivo, apenas reagindo à rotina, que esconde nossas fragilidades. Agora não. Seremos obrigados a ficar em casa, convivendo com nossas limitações, em nome do bem estar dos nossos familiares, mas também nos desconhecidos. Pelo menos por algum tempo, teremos que nos contrapor a Sísifo, expondo nossas fragilidades e nos modificando pelo caminho da solidariedade. A redenção virá se aproveitarmos o atual momento para nosso crescimento pessoal.

Algumas imagens emocionantes de solidariedade na Itália já circulam pela internet, com vizinhos cantando e dançando das varandas de suas casas, fazendo-se companhia, à distância. Jovens tem se oferecido para fazer compras no supermercado ou na farmácia para vizinhos idosos.

Em chinês (e aqui vale bem a referência), a palavra crise é representada por dois caracteres. Um representa perigo e o outro representa oportunidade. É hora de nos perguntarmos aonde essa crise nos toca para que, por meio do distanciamento, possamos exercitar o que temos de mais nobre: a empatia e a solidariedade. Só há saída pelo esforço coletivo. Essa é a verdadeira forma de estarmos próximos uns dos outros.

Analice Gigliotti é Mestre em Psiquiatria pela Unifesp; professora da Escola Médica de Pós-Graduação da PUC-Rio; chefe do setor de Dependências Químicas e Comportamentais da Santa Casa do Rio de Janeiro e diretora do Espaço Clif de Psiquiatria e Dependência Química.

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