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Por Luisa Mascarenhas, psicóloga e escritora
Autora do livro 'A Vida Virtual Como Ela é'
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O mito do macho

Uma batida de carro, uma mulher "sozinha" e a velha - e persistente - fantasia do macho que nos resgata e nos protege de todo o mal

Por Luisa Mascarenhas
Atualizado em 14 fev 2020, 16h46 - Publicado em 14 fev 2020, 13h23

Trânsito lento, perto do túnel. Naquele anda e para e anda e para, a menos de 20 km/h, raios de sol incidiram sobre o meu para-brisa, me cegando por segundos, e veio o solavanco. Saí do carro, um senhor saiu do outro, irritado. Vendo que eu não fugiria das minhas obrigações de quem bate atrás, deu uma sossegada, até porque o estrago do carro dele parecia ínfimo. Entramos nos veículos para sairmos dali e irmos falar com calma num local mais afastado, em que não atrapalhássemos o trânsito. Mas… Surpresa: os carros estavam colados. Na verdade, estavam trepados. O meu no dele. Porque o sujeito tinha aquele “treco de aço” na traseira do carro, aquele que faz reboque, sabe? O meu carro, na batida, de alguma forma enganchou no dele, ficou por cima desse pino. Diante disso, no nervosismo, e querendo sair do caminho dos outros, na hora do rush, decidimos, com um cara da CET-Rio que apareceu tentando dar suporte para a situação, irmos ambos dirigindo nossos carros, mesmo colados, até um local menos movimentado.

Digamos que ele praticamente me rebocou. Se eu soubesse o estrago que seria, jamais teria concordado, mas foi tudo muito rápido. Todos nós querendo ao menos liberar a passagem alheia. A qualquer custo. Meu custo, no caso, fosse qual fosse. Conseguimos colocar os carros num canto da calçada, mas estava escurecendo e a região não era, digamos, muito acolhedora.

Após breve interação com eles, liguei para minha corretora, que havia me enviado um áudio mais cedo para avisar que meu seguro havia vencido “ontem” e precisávamos fazer um novo. Quando falei da batida, ela não acreditou. Parecia piada. Eu queria entender se não era possível ainda usar o serviço de reboque da seguradora, porque havia acabado de vencer a apólice e eu renovaria com eles. Ela me pediu uns minutos para checar se conseguia.

Na confusão, além do guarda e do senhor que dirigia o outro carro, veio mais um homem tentar ajudar. Não consigo lembrar quem era esse terceiro, veio do nada, dar “uma força”. A batida estava resolvida, todos bem. Eu pagaria o estrago, a despeito do sujeito ter declarado em alto e bom som que colocou o “guincho” no carro única e exclusivamente para poder se proteger em colisões, destruindo o carro alheio nesse processo. Jamais havia tido a intenção de usar o apetrecho para nada, a função era essa. E agora eu teria que pagar tudo. Tudinho.

Meu carro aparentemente tinha sido afetado na parte elétrica, então achavam que eu não deveria andar com ele. Eu estava encalhada até resolver essa questão. Percebendo uma inquietação, falei que eles três (cara da CET-Rio, o senhor do outro carro e mais o anônimo que surgiu do nada) podiam ir. Eu estava bem, e tentando resolver o problema com “a mulher do seguro”. Percebi que não se tranquilizaram. Em poucos minutos, a questão, que antes era a batida, passou a ser eu estar ali, sem ninguém para me ajudar.

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Rosana (vou chamá-la assim) retornou a ligação, dizendo que não havia conseguido o reboque. Nenhuma ajuda do seguro. E sugeriu que eu largasse o carro e saísse dali. Eu estava pensando numa solução melhor, já que estava em cima da calçada (por orientação do guarda) e sabia que levariam meu carro para um depósito se eu o deixasse naquele local. Rosana perguntou: “Você tá com quem? Falou com seu marido?” Eu respondi que não era casada, tinha namorado. Ela perguntou se eu o havia chamado. Falei que não, que ele estava trabalhando e não via sentido em fazê-lo ir até lá.

O agente da CET-Rio, o senhor em quem eu bati o carro e o outro desconhecido continuavam ali meio desnorteados, e também insistiram que eu deveria chamar alguém. Eu não entendia qual era a ideia. O carro não alçaria voo se alguém estivesse lá ao meu lado. Que diferença faria? Não conseguia compreender. Todos estavam aflitos. Eu insisti: “Rosana, que diferença faz?” E ela: “Não vai ficar aí sozinha, né. Não tem ninguém que possa ir? Pai, irmão, cunhado, amigo?! Alguém com pinto!”. Rimos brevemente, ambas, um riso meio estranho, do comentário aparentemente inusitado dela. E ali caiu a ficha. Olhei para os lados e me dei conta da cara de dó dos homens. Estavam todos consternados com a mulher sem “ninguém” para resgatá-la. Eu queria um reboque, eles queriam um macho.

Antes que alguém julgue a Rosana, deixo claro que a reação foi coletiva. Todos lá estavam pensando a mesma coisa e certamente boa parte das pessoas pensariam o mesmo. Bateu o carro? Chama um homem. Como se a simples presença masculina já fosse protetora ou trouxesse algum tipo de alívio ou solução. Rosana, sem papas na língua, foi porta-voz daquilo que está no imaginário coletivo: a mulher não consegue resolver esse tipo de situação sozinha. A mulher precisa ter um macho ao lado para chamar de seu. Não, para ele a chamar de sua. Senão ela, coitada, está largada, desprotegida. Eu pensava o tempo todo: “Tá, mas que diabo um macho vai poder fazer aqui? Levantar o carro tipo Superman ou Hulk? Vai espantar qualquer possibilidade de assalto? A presença de um macho agora era como uma arma mortífera e amedrontadora? Que grandeza e força masculina seriam essas, que me protegeriam de todo mal? Eu só queria ir pra casa rápido, mas sem abandonar meu carro. Queria uma solução, não um macho.

Não tinha jeito. Estava escurecendo e cada vez mais ermo o local. Teria que largar o carro, sabendo que no dia seguinte teria sido levado. Depois de desistirem da mulher “sem noção de não chamar macho algum numa hora dessa”, todos tinham ido embora. Consegui usar os últimos suspiros de bateria para chamar um Uber. Ele chegou. Veio bem humorado, tentando entender o que aconteceu. Eu e ele, juntos, concluímos que era possível chegar com meu carro até minha casa. Ele iria me escoltando, ambos com pisca alerta. Iríamos beeeem devagar, no cantinho. E assim fomos. Deu certo. Paguei a corrida e agradeci muito. No dia seguinte arranjei um reboque para levar o carro ao conserto.

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Fiquei pensando depois que, de fato, alguém com pinto (ao que tudo indica) me ajudou. Mas a mesma ajuda poderia ter sido dada por alguém sem pinto. Eu sozinha não teria conseguido, é verdade. Mas não precisei chamar macho nenhum. Pelo menos não um macho para efeito psicológico. Bastou um prestador de serviço com boa vontade.

O senhor no qual eu bati com meu carro (o tal do guincho para poupar o carro dele destruindo o carro dos outros) me ligou várias vezes, mesmo depois que eu paguei o conserto do carro dele. Ficou dando opinião sobre o mecânico que deveria fazer o serviço, querendo dissertar sobre a batida. Queria me ajudar, já que eu era “sozinha”.

Até hoje acho curioso esse episódio todo, e as reações e o comportamento desse senhor depois do ocorrido. Não, minha corretora não é uma mulher tipicamente machista. Pelo que me parece, é uma mulher bem despachada, trabalhadora, independente. O pinto que ela colocou “pra jogo” ali no meio da confusão, era o tal do macho imaginário que quase todo mundo já pensou em algum momento. Ele vem pra acolher a mulher. Vem sem reboque, sem nada, mas sua simples presença faz toda diferença.

Acho impressionante ver o quanto ainda estamos todos enganchados nesse tipo de fantasia. Fico imaginando se tivesse chamado meu namorado ou algum amigo ou cunhado. Iam chegar lá e fazer o que qualquer amiga minha poderia fazer, que seria me acompanhar. Ou, mais provável, teriam falado com o motorista do Uber tudo que falei, e pedido para eu ir no banco do carona do meu próprio carro, enquanto iriam dirigindo. Fariam tudo que fiz ou menos, e, ao final, apertariam as mãos do “Uber”, tipo “brother”, numa clássica cumplicidade masculina. Estariam orgulhosos da classe de machos a qual pertencem. E eu teria ficado ali ao lado, embevecida, achando que jamais seria capaz de fazer aquilo que fiz na maior tranquilidade quando estava sozinha. Lembrando que, não fosse o sujeito do outro carro ter um pinto, quer dizer, um pino na traseira do próprio carro, nada disso teria sido necessário.

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Luisa Mascarenhas é psicóloga, escritora e roteirista. Criadora da página de humor Pirei Online (no Facebook e Instagram) e autora do livro “A Vida Virtual Como Ela É”.

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