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Por Lelo Forti, mixologista
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A intolerância invade as coqueteleiras

Somos mais de sete bilhões de escravos da nossa ignorância, da falta de empatia humana e da incrível inabilidade de conviver em harmonia

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2 jun 2020, 15h34

Os livros de história do futuro terão muitos e muitos capítulos contando sobre o terrível ano de 2020. Será, de longe, o ano mais absurdamente triste de todo século XXI, a não ser que ainda tenhamos o dia do Juízo Final, como acreditam cristãos, ou, até mesmo, a descoberta de um meteoro ou asteroide em rota de colisão com a terra, definindo o fim da raça humana. Nenhum tsunami, terremoto, eclipse lunar, solar, tempestades ou furacões farão frente à baixa de vidas ocorridas no Planeta em 2020. Detalhe: estamos em junho. Faltam ainda seis meses para o fim do ano que mudou nossas vidas.

Mas não é sobre a pandemia de Covid-19 que esta crônica trata. Sobre o coronavírus e suas estatísticas, já estamos estarrecidos com nossa vulnerabilidade médica, social e política. Triste, muito triste, mas não se trata disso.

Falo de outra doença, mais especificamente de um câncer que nos assola desde que a humanidade se entende como Homo sapiens e que nunca foi erradicado: Racismo. Alguns dias atrás, antes do assassinato brutal de um negro nos Estados Unidos (já falaremos sobre isso), a comunidade de bartenders brasileira viveu na pele o absurdo do racismo. O crime, comprovado em uma troca de mensagens, ocorreu quando um reconhecido bartender de São Paulo, um dos primeiros de sua geração, ofendeu, um “colega” de profissão, negro, que fez uma viagem aos Estados Unidos.

“Aqui em São Paulo, tem uns negros que se fazem de vítimas toda hora, mas ficam em Nova York dois meses com o dinheiro do capitalismo. Nunca vi um branco reclamar por não ter a mesma oportunidade, e vamos combinar, com muito mais capacidade”(trecho central das ofensas).

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 Você deve estar se perguntando: porque não divulgar o nome dos envolvidos nesse terrível episódio? Por motivos simples: não vou propagandear o racista, e também é de direito que sua identidade seja preservada. Cabe aos órgãos de justiça apurarem o caso.

No entanto, o episódio é grave e requer todas as sanções previstas na lei contra o racismo. (Mas muitas foram as manifestações de repúdio nas redes sociais, feitas por colegas de profissão e tantas outras pessoas, que repudiam essa afronta pela simples cor da pele ser diferente).

Vale uma reflexão aqui: o agressor é de origem nordestina, povo esse tão sofrido de preconceitos também. Vejo, além do crime, uma hipocrisia descabida e uma total ignorância intelectual. Deixemos o racista para os termos da lei. Lamentável e com certeza não representa nossa comunidade de profissionais de bar, onde temos todos os povos, ou melhor, temos a raça humana diversificada.

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Esse episódio me fez refletir e tentar, de alguma maneira, entender por que muitos são tão avessos ao que lhes é “diferente”, seja em termos de cor de pele, religião, entre outros. Fui buscar fatos históricos relevantes na literatura e achei inúmeros pontos de reflexão, mas todos levam ao mesmo centro: escravizar para conquistar.

Os antigos egípcios, por exemplo, tinham como população escravizada, na maioria, pobres e miseráveis, pessoas privadas de conhecimentos da escrita, bem como doentes e moribundos. A cor da pele não era o cerne da questão. No império romano, os escravos eram brancos, negros, hebreus, muçulmanos, mulheres e até crianças. Não importava a cor, e sim, mais uma vez, eram escravizados os pobres e párias da sociedade à época, aqueles sem ascendência familiar relacionada à nobreza ou aristocracia. Nada a ver com quantidade de melanina.

Quando chegamos à escravidão negra? Quando os europeus começaram as navegações de conquista e, embarcados em suas caravelas chegaram ao continente africano. Homens não enquadrados no modelo social europeu vigente, vivendo em pequenos grupos familiares locais e seus rituais milenares, serviam de prato cheio para captura e sofrimento vitalício em terras longínquas que bem sabemos. Muito parecido com o ocorrido com os índios das Américas. Mulheres negras escravizadas para serviços domésticos e sexuais, homens negros escravizados para todo e qualquer tipo de serviço braçal.

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Dívida de sangue

A Humanidade não nasce intolerante ou preconceituosa. A sociedade, a educação familiar e nossas experiências são, talvez, nosso ponto de partida. Segue um exemplo bem brasileiro: desde pequeno, um pai conduz a educação de seu filho, no dia a dia, para torcer pelo time de futebol do coração paterno. O tempo vai passando e, as experiências, o convívio e tantos outros acontecimentos, obviamente, quase sem exceção, fazem desta criança, um novo torcedor fanático pelo time do pai. Até ai tudo normal. Mas, o fato da criança não ter tido a opção de escolha própria, leva ela a acreditar que, aquele time é o melhor do mundo, e logo, os times adversários não prestam, digamos assim. Isso aconteceu comigo, e é bem provável que tenha acontecido com você também.

Então, esse mesmo exemplo pode servir para um lar, onde algum familiar diga que essa ou aquela pessoa não presta. Logo, a criança que cresce dentro desse lar, sem saber o porquê, passa a acreditar que indeterminado indivíduo vale menos. Dentro desse contexto, envolvemos a cor da pele, e isso, transforma humanos em animais.

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Crianças não nascem preconceituosas, bandidos ou mocinhos, são ensinadas e conduzidas para determinados comportamentos enquanto da formação do caráter. E aí entra a solução. Ensinar nossos pequenos a igualdade entre os membros da espécie humana. Parece fácil, mas não é. Requer esforços freqüentes das pessoas que os cercam, para reprimir condutas e discursos discriminatórios, e nem sempre essas mesmas pessoas se dão conta de que o racismo pode estar presente nas atitudes cotidianas.

Não consigo respirar

Hoje faz sete dias dos protestos contra o brutal assassinato do cidadão americano George Floyd, que, desarmado e em plena luz do dia foi, imobilizado, e agonizou até a morte, asfixiado por um policial branco. As cenas falam por si. E compreende-se a indignação que motivou os protestos, primeiro nos Estados Unidos, e agora, pelo mundo todo. A frase “I can’t breath” ecoa há uma semana e cada vez que a escuto nos noticiários me revira o estômago.

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Nós, humanos, temos uma dívida de sangue com pessoas negras. Não importam a geração à qual pertencemos. Temos em nossas mãos o sangue extraído pelos chicotes, pelos abusos sexuais, pelas atrocidades que os negros de todo mundo sofreram (e ainda sofrem injustamente). Esse brutal assassinato abriu velhas feridas na sociedade e ela não pode mais se omitir a isso. Mesmo que eu estude uma vida inteira, ou observe o comportamento humano, não serei capaz de achar uma razão aceitável para discriminar um ser humano motivado pelo tom de pele. Aliás, por nenhuma outra razão.

Gostaria de ter uma resposta plausível de um racista par uma simples pergunta:

O que te faz achar que é melhor do que outro exemplar da sua espécie?

Temo pelo futuro da humanidade.  Tomando o recente exemplo da pandemia, parece que não apreendemos com o passado e, de novo, vamos repetir os erros cometidos e nos colocarmos uns contra os outros. Tempos sombrios vivemos. Velhas feridas foram abertas. Movimentos silenciosos de ódio ganham voz e medidas autoritárias estão afrontando a nossa liberdade.

Te convido, quando pudermos estar juntos, a beber um Dry Martini e refletir sobriamente em que podemos contribuir para eliminar o racismo de uma vez por todas da humanidade.

E ao colega bartender: reveja seus conceitos e suas opiniões. Creio que você deva desculpas ao seu par. Seria nobre de sua parte. Caso não seja possível, lamento sua intolerância e peço a Deus que conforte sua família em conviver com tamanha ignorância.

Cheers.

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