“O que é que ainda precisa acontecer para a gente fazer uma guerra?”
Nem a água podre que sai das torneiras espanta a passividade do carioca
No metrô, a caminho da Cinelândia, tento disfarçar o incômodo com o cheiro. Não é o de ninguém, é o meu. Talvez os outros passageiros não estejam sentindo, mas o cheiro da água do banho – uma mistura de Sapólio com terra molhada – está impregnado na minha pele, que não para de coçar. Imagino o início de uma revolução popular em que todos os cariocas pagariam a conta da Cedae em juízo, como um protesto coletivo e apartidário. Uma espécie de “tá legal, até aqui a gente segurou. Agora chega”. E penso: o que mais precisa acontecer para que façamos alguma coisa?
Na Estação Siqueira Campos, meu delírio é obrigado a sair do vagão para ceder lugar a outros corpos que ocupam o mesmo espaço que eu, contrariando Newton. Grávidas, senhoras, crianças, ambulantes, executivos amontoados como um flash mob das Sardinhas Coqueiro a uma temperatura média de fazer inveja ao Deserto do Saara. Uma concessão pública de transporte, com esse preço de passagem e essa qualidade de serviço. E penso: o que mais precisa acontecer para que façamos alguma coisa?
Chego no Teatro Sesi Centro e tenho a alegria de constatar que não é só o vagão do metrô que está cheio numa noite de terça-feira. Uma plateia lotada aguarda por “Ielda – Comédia trágica”, de Renato Carrera. A peça se passa no final dos anos 80, recheada de referências da época, como a morte de Odete Roitman em “Vale Tudo” e o confisco da poupança da (toc-toc-toc na madeira) Zélia Cardoso de Mello.
Em um certo momento da peça, Renato vai à boca de cena, pede para acender a luz do teatro, sai do personagem e pergunta, olhando nos olhos da plateia: “o que é que ainda precisa acontecer para a gente fazer uma guerra?”. Das belezas do teatro: sem saber, o ator reproduziu no palco a pergunta que me consumiu o dia inteiro e me senti menos sozinho.
Nenhum espectador arrisca uma resposta. O ator pergunta de novo: “o que é que ainda precisa acontecer para a gente fazer uma guerra?”. Timidamente, alguém do fundo grita: “Atitude!”. Um segundo emenda: “União”. Uma terceira espectadora: “Coragem”. E assim, a plateia perde a timidez e um coro de vozes, umas sobre as outras, arrisca uma lista de razões que ainda nos impedem de sairmos às ruas contra essa cusparada diária que estamos levando na cara em todos os níveis de poder: “abrir mão de privilégios”, “olhar para o lado”, “sair da zona de conforto”.
Estudantes, aposentados, negros, adolescentes, LGBTs, mulheres, artistas: somos maioria na terra da água podre, do tiro na cabecinha, do plágio nazista, do racista na Fundação Palmares, do portador de HIV visto como “despesa”, da fila de dois milhões de pessoas à espera de aposentadoria no INSS, dos 259 mortos e nenhum indiciado em Brumadinho, dos estudantes sem nota no Sisu, da defesa da abstinência sexual dos adolescentes, do assassinato não esclarecido de Marielle Franco, do sumiço do Queiroz (lembra dele?). Então fica a pergunta: o que mais precisa acontecer para vencermos a nossa apatia e sairmos às ruas?
Vá assistir “Ielda” se você tem algum palpite ou se também está em busca de respostas. Eu saí de lá com um monte delas.
Gustavo Pinheiro é carioca, escritor, dramaturgo e roteirista.