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Por Gustavo Pinheiro, escritor, dramaturgo e roteirista
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“Desculpe, senhor, não podemos aceitar seu sangue”

Enquanto a doação de sangue for vetada aos gays, seremos cidadãos de segunda classe na sociedade

Por Gustavo Pinheiro
13 fev 2020, 16h44

“Desculpe, senhor, não podemos aceitar seu sangue”. Foi o que me disse a funcionária do Hemorio, nitidamente constrangida. A afirmação veio depois que ela correu os olhos na ficha de triagem de doadores e constatou a minha declaração de ser casado com um homem. “Homens que fazem sexo com outros homens não podem doar sangue, me desculpe”, afirmou.

O que me levou ao Hemorio naquela manhã foi uma entrevista com Luiz Amorim, diretor-geral da instituição. Gentilmente, ele se dispôs a me receber e responder algumas perguntas para o projeto de uma série de TV. Me organizei para chegar meia hora antes e fazer uma boa ação: um homem saudável como eu deve poder doar um caminhão pipa de sangue, pensei. Tolinho. No Brasil de 2020, fazer sexo com outro homem não é sinal de saúde. Ao contrário, é entendido como “situação de risco” – atualização politicamente correta para “grupo de risco”.

Amorim é daqueles funcionários públicos que dão gosto de ver (e conversar). Gentil, atencioso, culto e responsável por um trabalho essencial à frente do principal centro de coleta de sangue do Estado do Rio, esse esqueleto de dromedário que luta para ficar de pé. Mas Amorim deu o azar de conversarmos logo depois que tive a doação vetada. Eu estava p@#$%&*! Olha que eu já fui barrado em muitas situações, mas tentando fazer o bem a um desconhecido foi a primeira vez.

Pacientemente, o diretor do Hemorio me explicou que há uma janela de alguns dias para que doenças possam ser detectadas no exame de sangue (15 dias para o HIV e 30 dias para hepatites B e C). Ou seja: se eu transei sem proteção com alguém contaminado anteontem, o vírus ainda não poderia ser identificado. Mas será que só os homens gays tem o tal “comportamento de risco”? O que dizer dos engravatados de aliança no dedo nos whisky bars da Rua Buenos Aires com meninas no colo da idade das suas filhas? Eles estão perdoados porque chegam em casa a tempo de jantar com a esposa? Segundo a ONU, 696 mil mulheres são infectadas pelo HIV por maridos ou namorados, todos os anos, no mundo.

“O conceito de grupo de risco ficou para trás. Se um homossexual tem um único parceiro, que não está infectado, qual é a chance dele pegar o vírus da AIDS? É zero. Um outro, que tenha dez parceiros e nenhum dos dez está infectado, qual é a chance de ele pegar? Zero. Mas se você pega uma mulher casada com um homem infectado, a chance dela é maior do que zero. Quem é grupo de risco aí?”, provoca o médico Drauzio Varella em um vídeo bastante elucidativo no YouTube.

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O diretor do Hemorio explica que a doação de sangue por homens gays é uma questão em discussão no mundo todo. O Canadá é o país com a política mais progressista: para doar sangue, o gay deve estar há, pelo menos, três meses sem fazer sexo. No Brasil, a legislação pede doze meses de abstenção sexual. Gostou né, Damares?

Em 11 de março, o Supremo Tribunal Federal voltará a discutir a legislação sobre doação de sangue por homossexuais. Decidir sobre o óbvio no Brasil, sabemos, leva tempo: o assunto ganha poeira no STF há três anos. O relator da ação é o ministro Edson Fachin, que votou contra a proibição da Anvisa, órgão que regula o tema, considerando-a discriminatória e “uma ofensa à dignidade humana”. Os ministros Luiz Fux, Rosa Weber e Luis Roberto Barroso acompanharam o voto do relator. Luz no fim do túnel.

Já o ministro Alexandre de Moraes abriu uma “divergência parcial”. Se a gente pode complicar, pra que facilitar, né não, ministro? Ele propõe que homens gays possam doar, desde que o sangue coletado seja armazenado para a realização dos exames de triagem depois da janela imunológica. Só então a doação poderia ser concretizada. Será que o ministro acredita que o sangue doado não passa por nenhum tipo de análise antes de ser repassado a outra pessoa? Em seguida, Gilmar “Sempre Ele” Mendes pediu mais tempo para analisar o caso. E aqui estamos: esperando o ministro desde outubro de 2017.

Na outra ponta da discussão está o Ministério da Saúde do Irã, digo, do Brasil, o mesmo que na semana passada lançou campanha para que adolescentes guardem seu tesão no cofrinho e deixem para transar mais tarde. Segundo o Ministério, os critérios para doação de sangue são “baseados nos perfis epidemiológicos mais atuais dos diferentes grupos populacionais”. No Brasil de 2020, homossexuais não são um grupo populacional. Se gay não é bem vindo para fazer turismo – certo, presidente? – imagine para doar sangue. Seguindo a lógica da Terra plana e do rock como causador do aborto, deve fazer sentido abrir mão de 17 milhões de potenciais doadores, ainda que não tenha sangue nos estoques dos hospitais.

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Faltam seis votos no Supremo sobre a doação de sangue por homens gays. Em 2011, o STF reconheceu, por unanimidade, a união civil entre pessoas do mesmo sexo. Mas enquanto gays não puderem ter a igualdade de doar sangue, seremos cidadãos de segunda categoria aos olhos (vedados) da Justiça. Não percam a chance de fazer História de novo, Excelentíssimos Ministros. Fui barrado como doador, mas meu sangue poderia estar salvando vidas em algum lugar deste país. O perigo na doação não são os gays, mas o preconceito, a homofobia e a desinformação.

Gustavo Pinheiro é carioca, escritor, dramaturgo e roteirista.

 

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