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Por Gustavo Pinheiro, escritor, dramaturgo e roteirista
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Isso não é teatro. Isso é teatro

Enquanto puristas se preocupam com definições, artistas seguem criando on-line

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Atualizado em 14 jul 2020, 19h55 - Publicado em 14 jul 2020, 19h08

Não, não é teatro. Teatro a gente sabe bem o que é: público na plateia e ator no palco, com a respiração oscilando diante dos nossos olhos. Aplausos quando as cortinas se fecham. Isso é teatro. Mas eis que um vírus vinte vezes menor que um fio de cabelo varreu os artistas dos estúdios e salas de espetáculos, sem aviso prévio. Impedidos de trabalhar, eles estão fazendo experiências em transmissões e lives, gratuitas ou pagas. Se na peça “As you like it” Shakespeare resumiu que “o mundo é um palco”, o coronavírus acaba de definir que “o palco é uma tela”, ao menos por enquanto. O inimigo número um do teatro – o celular, essa praga! – virou nosso veículo de atuação. Usar a internet foi a forma que encontramos para continuarmos juntos, criando e pensando o nosso tempo. Isso é teatro.

As companhias – Satyros, Armazém, Complexo Duplo, para citar apenas algumas –, a programação do Sesc São Paulo, a agenda do Teatro Petra Gold com o projeto Teatro Já, são muitas as iniciativas que buscaram um novo caminho para continuar em atividade. Profissionais com carreiras dedicadas aos palcos estão experimentando transmissões ao vivo de espetáculos, diretamente de teatros vazios ou mesmo de casa: Renata Sorrah, Debora Lamm, Kelzy Ecard, Cesar Augusto, Ana Beatriz Nogueira, Julia Rabello, Marcio Vito, Victor Garcia Peralta, Felipe Vidal, Pedroca Monteiro, Zezé Polessa, Lilia Cabral, Guilherme Piva, Inez Viana, Renato Borghi, Leonardo Netto, Patricia Selonk, Paulo Betti, Luis Lobianco, Giulia Bertolli, Paulo de Moraes, Fernando Philbert, Simone Mazzer, Renato Carrera, Charles Fricks, Vilma Melo. A lista é enorme. Todos eles sabem que não estão fazendo teatro, apesar da emoção envolvida, do nervosismo e do frio na barriga a cada nova apresentação. Isso é teatro.

Peças como “Um dia a menos”, com Ana Beatriz Nogueira e “Também queria te dizer”, com Emilio Orciollo Neto, tiveram as sessões esgotadas, com a capacidade máxima de transmissão para 300 pessoas. Com o crescimento da violência e a queda na renda da população, dá pra contar nos dedos de uma mão as peças que estavam atraindo 300 espectadores por noite no Rio, nos últimos meses antes da pandemia. Mesmo em cidades onde essas questões não são um problema, como Nova York e Londres, as peças online se tornaram uma realidade.

O alcance de público não é um argumento que possa ser ignorado. Pelos satélites e fibras óticas, nossos trabalhos estão chegando a espectadores em lugares do Brasil e do mundo que nunca receberam espetáculos, nem mesmo quando a cultura era bem vista pelo Estado, nos idos tempos da Terra redonda.

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Alguns trabalhadores de teatro já dizem que a transmissão de peças é uma realidade com a qual teremos que nos acostumar no curto e médio prazos: há espectadores que simplesmente não voltarão tão cedo às salas e optarão por assistir os espetáculos no conforto de suas casas. A esta altura dos acontecimentos, seremos xiitas a ponto de abrir mão de quem quer nos assistir? “O teatro on-line pode estar chegando para ficar, ter sua própria poética e afirmar-se como, digamos, a nona arte”, previu o craque Aderbal Freire-Filho em artigo para a “Folha de São Paulo”, no começo de julho.

No livro “Fernanda Montenegro: Itinerário Fotobiográfico”, a atriz relembra as mais de 400 adaptações de peças que fez ao lado de Nathalia Thimberg, Italo Rossi, Sergio Brito, Fernando Torres, Flavio Rangel e Manoel Carlos no programa “O Grande Teatro”, na TV Tupi, na TV Rio e na TV Globo. De Tchecov a Pirandello, de Ibsen a Noel Coward, o programa levava o melhor do teatro mundial para a então novata TV, sem entendê-la como uma rival, mas sim como uma outra plataforma. “Além de nos formar, o Grande Teatro comprovadamente formou também plateias para o teatro e para a literatura durante seus nove anos”, afirma a atriz. Formar plateias? Isso é teatro.

As imagens que nos chegam dos teatros reabertos na Europa, como Teatro Nacional D. Maria II, em Portugal, e o Berliner Ensemble, na Alemanha, mostram cadeiras retiradas ou espectadores distanciados, para se preservar o isolamento social. Como um velório de defunto com poucos amigos, toda a plateia está de máscara sobre o rosto, sem dar a chance de conferirmos se o espectador a dois metros de distância está rindo, bocejando ou usando a língua para tirar a casquinha da pipoca entre os dentes. Chamaremos essa nova configuração de teatro? Ou seremos puristas de chamar de teatro apenas quando um espectador puder sentar ao lado do outro novamente?

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O rádio não matou o teatro, o cinema não matou o teatro, a televisão não matou o teatro, a internet não matou o teatro, o streaming não matou o teatro. Não serão as lives a conseguir tal façanha. Tudo que está sendo feito on-line é bom? Talvez não, mas é possível se chegar a resultados interessantíssimos. Ou será que todas as peças que estavam em cartaz antes da pandemia eram boas?

Estamos com saudades. Do Poeira, do Sesc Copacabana, do Sesi Centro, do Oi Futuro. De qualquer sala escura que nos agregue. Do burburinho nas coxias, dos aplausos ao final da sessão. Ortodoxos, não se preocupem. Ninguém melhor do que quem faz teatro para saber que o que estamos fazendo não é teatro. Falta o essencial: a comunhão da presença física dos atores e da plateia. Vai voltar, mas não sabemos quando. Até lá, usaremos a boa vontade das conexões – humanas e do 4G – para nos confortarmos e mantermos nossa chama acesa. Isso é teatro.

No entanto, um hábito arraigado do espectador carioca mantem-se intocado: mesmo assistindo na tranquilidade de casa, sem precisar se levantar do sofá, há quem consiga chegar atrasado às transmissões. Pelo menos, por enquanto, nos livramos do barulho do papel das balinhas. Isso é teatro.

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Gustavo Pinheiro é dramaturgo e roteirista.

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