Barbárie
Eu costumava ir de carro à análise. A ansiedade do engarrafamento se agravava na hora de encontrar uma vaga, de forma que eu gastava um bom tempo no divã até separar a angústia do trânsito da minha. Neste ano, mudei a rotina. Passei a fazer o mesmo trajeto de bicicleta, ou correndo, conforme a vontade. […]
Eu costumava ir de carro à análise. A ansiedade do engarrafamento se agravava na hora de encontrar uma vaga, de forma que eu gastava um bom tempo no divã até separar a angústia do trânsito da minha.
Neste ano, mudei a rotina. Passei a fazer o mesmo trajeto de bicicleta, ou correndo, conforme a vontade.
A Lagoa Rodrigo de Freitas é muito bonita no sol da manhã. Você cruza com o vaivém das babás, dos bebês, dos jovens atléticos e dos velhos ativos. Vez por outra, a natureza te brinda com uma capivara selvagem. Alguns remam, outros velejam, e você é tomado por uma sensação de civilidade agradável. A Noruega é aqui.
Não é.
A capivara sumiu depois que tentaram fazer churrasco das crias dela, e, outro dia, a mortandade de peixes era tanta que as margens ficaram lotadas de urubus famintos. Gosto muito de urubus, mas vê-los aos montes, refestelando-se na tragédia ecológica, não é das cenas mais bucólicas. Isso sem contar o mau cheiro.
No fim de abril, acordei disposta, planejando uma pedalada maior, pelo outro lado da Lagoa, antes de me dedicar a Freud. Preparei o café, abri o jornal e, na página policial, lá estava a notícia de que gangues de pivetes andavam não só furtando, como também esfaqueando inocentes no bairro. Dois jovens encontravam-se internados com ferimentos graves no hospital.
Fui até a varanda e constatei que a ciclovia, apesar do dia esplendoroso, estava mais vazia do que antes.
A ideia de voltar ao volante por medo de morrer no caminho me deprimiu à vera. Desisti da bicicleta, mas arrisquei o cooper pelo trajeto mais curto. A cada trecho vazio, o coração batia com receio do destino cruel.
Uma semana depois, a polícia prendeu alguns delinquentes com facas entre Ipanema e a Lagoa. Os bondes haviam saído da periferia do Rio para roubar na Zona Sul. Tratava-se de um novo estilo de abordagem que vem se disseminando por toda a cidade.
Ser assaltado é uma coisa, levar uma facada é algo que vai além da injustiça social, da raiva do playboy e da madame. É a barbárie humana com seu cortejo de horrores.
Galgamos um novo patamar de revolta e violência. Um descontrole social que torna ainda mais anacrônico o meu delírio norueguês. Diante da faca, a análise semanal, a preservação da Mata Atlântica, a energia limpa e a bolha em que vivo ficam ainda mais anacrônicas.
Avança, no Congresso, a revisão do Estatuto do Desarmamento, para tornar menos rígidas as regras para o acesso e o uso de armas no Brasil. Será essa a solução? Nós nos sentiríamos mais seguros se saíssemos armados para trocar tiros por aí?
Eu disse, num artigo, que o Bolsa Família era assistencialista. Recebi uma carta que me explicava a importância do benefício no combate à desnutrição infantil, à evasão escolar, na melhoria de vida das famílias que o recebem. Retiro o que disse. Bolsa Família já, e educação, e emprego, e saúde, e moradia, e saneamento básico.
A saída para o caos social é bem mais complexa do que o três oitão na cintura. Ela demanda tempo, energia, planejamento, dinheiro, empenho.
Desconfio que não estarei viva para ver seus resultados.