Ainda estou aqui
Meu presente de Natal deste ano é o último livro de Marcelo Rubens Paiva, Ainda Estou Aqui. Eu o li com o coração apertado, identificada com o menino paulista que se mudou com a família para o Rio, no início dos anos 60. Marcelo amava o Leblon, o mar e a amizade com os moleques […]
Meu presente de Natal deste ano é o último livro de Marcelo Rubens Paiva, Ainda Estou Aqui.
Eu o li com o coração apertado, identificada com o menino paulista que se mudou com a família para o Rio, no início dos anos 60. Marcelo amava o Leblon, o mar e a amizade com os moleques das favelas do bairro; idolatrava a natureza e a liberdade daqui, até o dia em que a polícia invadiu sua casa, sequestrou seu pai e nunca mais o trouxe de volta.
Com ordens para que as portas e as janelas permanecessem trancadas, a sinistra quadrilha de federais à paisana permaneceu na residência por dias. Marcelo lembra do contraste entre o pôr do sol lá fora e a escuridão de dentro, entre os opostos que separavam a cultura de praia do funesto prédio do Dops, na Tijuca, comandado pelos gorilas fardados.
Com receio de que os pequenos sofressem o mesmo destino da mãe e da irmã mais velha — levadas até a central de tortura para chantagear o pai preso —, amigos próximos escondem o garoto num sítio em Petrópolis. Sozinho na paisagem bucólica e sem notícia dos parentes, Marcelo sente angústia, enfrenta ataques de asma, mas não deixa de usufruir a piscina, de praticar tiro ao alvo, de ter os 11 anos que tem, plenos de curiosidade.
Esse é um dos grandes mistérios do livro. Apesar das atrocidades nele contidas, a luz dos personagens é sempre maior do que o horror da perda e da morte.
O mesmo me intriga em Marcelo, o fato de sua inteligência ter suplantado o rótulo de filho de um mártir da ditadura, ou de jovem preso a uma cadeira de rodas. Descobre-se, no relato, a origem da inteireza e do carisma do autor. Eles vêm de berço, da mãe, de Eunice.
Eunice deu conta de um carma injusto, mil vezes injusto, sem deixar espaço para a autocomiseração piedosa. O clã ri na foto para a revista Manchete, pouco depois do desaparecimento do pai. O fotógrafo pede uma expressão grave dos seis, mas a mãe, como que num desafio, exibe o mesmo sorriso largo dos filhos, na varanda da casa onde foram felizes.
Aos 41, viúva e sem direito de herdar os bens do casal — a morte do marido levaria duas décadas para ser oficializada —, Eunice vira a página, forma-se em direito, cria os cinco rebentos sozinha e encontra, na causa indígena, um espelho da brutalidade que sofreu. É um assombro de mulher.
Ainda Estou Aqui é uma retrospectiva afetiva dos últimos cinquenta anos da nossa história. Uma visão íntima do golpe de 64, do sadismo dos militares, do amadorismo da esquerda, do genocídio dos índios, da Anistia e da redemocratização, através dos olhos de uma mulher ímpar, em processo acelerado de perda de memória.
Em tempos de apagão político, com o país refém das forças malignas que comandam o Congresso, Ainda Estou Aqui surge para lembrar que pessoas como Eunice existem, existiram, fazem e fizeram a diferença no Brasil.
Taí um presentão de Natal.