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Por Alexandre Carauta, jornalista e professor da PUC-Rio
Pelos caminhos entre esporte, bem-estar e cidadania
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Os mares de Maya, Beatriz e Cecília

Mais do que histórias de superação, recordista mundial e surfista da Rocinha têm em comum a eternidade lúdica do "mar absoluto" de Cecília Meireles

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Atualizado em 14 set 2020, 19h52 - Publicado em 14 set 2020, 12h13

Uma esboçava no Arpoador o salto à posteridade. Perto e longe dali, a outra mal acabava de nascer. Nos 14 anos seguintes as duas cariocas afogariam preconceitos, estatísticas, convenções. Maya Gabeira trocaria o Arpoador pelo Havaí, tomaria gosto pelas montanhas aquáticas, acumularia troféus. Venceria lesões, medos e dois baitas sustos. Faria história. Primeira mulher a surfar no Alasca e a cravar um par de recordes de ondas gigantes no Guiness – o segundo oficializado quinta-feira passada. Beatriz Barroso de Farias trocaria os nãos que o destino lhe reservava pela ambição de viver do mar. Nele mergulha diariamente, do alto da Rocinha. Beatriz também é campeã.

A jovem de 19 anos contava as horas para começar a faculdade de biologia quando Maya impôs-se à onda 13 vezes superior ao seu 1,68 de altura. Aquele 11 de fevereiro seria inesquecível. Ao descer pela parede de 22,4 metros, equivalente a um prédio de sete andares, Maya produziria mais do que a quebra em dois centímetros do próprio recorde. Inspiraria construções do impossível. “Ela prova que nós mulheres podemos ir longe. É a minha inspiração”, derrama-se Beatriz.

A futura bióloga marinha acalenta na família inspiração igualmente decisiva. Não vem das manobras no oceano. Vem da caneta da bisavó Luiza. A senhorinha sabe quase nada de esporte. Tampouco sabe escrever. Mas é dela a assinatura na inscrição para a escola de surfe, em 2015. Havia dois anos que Bia tentava obtê-la dos pais: “Eles não davam bola. Sem a minha bisavó, não teria virado surfista”.

(Ricardo Ramos Bocão/Divulgação)

Luiza deu a moral que faltava para a bisneta somar-se às sete milhões de surfistas do planeta. Em meio aos afazeres de estudante e aos trabalhos do sustento doméstico, Beatriz passaria a frequentar nos fins de semana a escolinha tocada desde 1994 por José Ricardo Ramos, o Bocão da Rocinha. Dele viraria um braço direito.

A adolescente levou dois anos até ficar em pé na prancha. “Eu sentia medo”, justifica, com sábia naturalidade. “Amo as ondas, mas tinha medo”. Saber ouvi-lo revela-se tão importante quanto superá-lo. Assim guiou-se tantas vezes o campeão mundial de ondas grandes Carlos Burle: “O medo faz parte do esporte, da vida. Sem isso, a gente não consegue nem atravessar a rua com segurança”, comentou o big rider, num papo online com estudantes da PUC-Rio, em junho.

Maya também encara sistematicamente o medo. Inevitável não ser despertado por estrondos como o do everest d’água que lhe renderia o novo recorde. A familiaridade com Nazaré, capital das ondas gigantes, onde mora parte do ano, não a imuniza do frio na espinha. Mais que uma rotina, um constante aprendizado.

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Beatriz exorciza seus medos noutra borda do Atlântico. Mesmo a 7.800 quilômetros de distância, projeta-se nos tobogãs bravios de Nazaré. Irriga o sonho na praia de São Conrado. Meia hora de caminhada a separa desse quintal transbordado de reciprocidade. Lá Bia aplaca a sede de integrar-se à vida marinha, e retribui a dádiva com um apoio abnegado às novas calouras, aos novos calouros. “Virou professora”, orgulha-se Bocão. “E ainda conserta pranchas”, acrescenta o empreendedor.

A maré do coronavírus arrastou Bocão e Beatriz para uma parceria não menos pródiga. No lugar das aulas, distribuição de cestas básicas na comunidade. Navegar era preciso.

(Ricardo Ramos Bocão/Divulgação)

Bia, Maya, Burle, Bocão fazem do surfe também uma filosofia de vida. Envolve, entre outras virtudes, a paciência. “Essa lição me acompanhou na quarentena. A paciência cultivada no surfe me ajudou a controlar a ansiedade. O mar me fazia muita falta”, relata Beatriz.

Há duas semanas ela reencontrou o quintal exilado na retina durante os cinco meses de confinamento. Nem o sonhado sucesso no Havaí ou em Nazaré suplantaria o sorriso de retomar a caminhada entre a casa no cume da Rocinha e a praia de São Conrado.

Felicidade igual, só nas visitas à bisavó. Há quatro anos Luiza está radicada casualmente em Saquarema, na Região dos Lagos, a 80 quilômetros da capital fluminense. O município abriga a icônica Itaúna, praia alçada ao imaginário do surfe pelos torneios lá disputados nos anos 1970 e 1980. “Ainda não surfei em Itaúna. Mas é questão de tempo. Por ora, vou lá rever a minha bisavó”, alegra-se.

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Enquanto sonha com Itaúna e Nazaré, a jovem criada pela bisavó tece pretensões singelas: começar a competir, ensinar as novas gerações, estimular a entrada de mais mulheres num universo 80% masculino. “Quando comecei, era a única da turma. Agora percebo mais garotas aprendendo a surfar. Elas veem casos como da Maya e se sentem mais motivadas, mais seguras. Eu mesmo já sirvo de exemplo para algumas meninas da Rocinha. Isso me deixa muito orgulhosa, e aumenta a minha responsabilidade”, emociona-se Bia.

Quando sobrar um tempo, ela vai pintar a prancha com “cores dos elementos marinhos”. Já as tem na alma. Nada lhe resplandece mais do que se misturar à água salgada. A delícia de ser simultaneamente “o dançarino e a sua banca”, como o “mar absoluto” de Cecília Meireles.

Essa simbiose profunda, quase celular, dilui as fronteiras entre Beatriz e Maya. Estão juntas. Não só porque nasceram na mesma cidade, amam o surfe, venceram discriminações, medos, prognósticos. Não só porque superaram as barras com perseverança, talento, empatia. Não só porque domam o mar, e o respeitam. Mas porque, acima de tudo, acima de pódios e circunstâncias, elas são o mar. São seus encantos, seus desafios, suas danças, suas multidões. São os muitos mares contidos no mar.

Beatriz e Maya encontram-se na eternidade lúdica do mar de Cecília:

“(…) matando-se e recuperando-se,

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correndo como um touro azul por sua

própria sombra, e arremetendo com bravura contra

ninguém,

e sendo depois a pura sombra de si mesmo,

por si mesmo vencido. É o seu grande

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exercício.

 

Não precisa do destino fixo da terra,

ele que, ao mesmo tempo,

é o dançarino e a sua dança.

 

Tem um reino de metamorfose, para

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experiência:

seu corpo é o seu próprio jogo,

e sua eternidade lúdica

não apenas gratuita: mas perfeita.”*

 

* Trecho do poema “Mar absoluto”, publicado por Cecília Meireles em 1945.

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Alexandre Carauta é jornalista e professor, doutor em Comunicação, mestre em Gestão, também formado em Educação Física.

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