Histórias de uma paixão alvinegra que irradia a atmosfera carioca
Coautor do recente livro sobre Loco Abreu exalta identificação do torcedor com o ídolo, desidratada pela exportação precoce de jovens talentos
Ele conquistou o sonho de todo garoto rubro-negro. Via de camarote Zico, Adílio, Leandro e outras feras aproximadas pelo bico de gandula na Gávea. Ali rascunhava, sem saber, a arrancada de biógrafo. A paixão por personagens do futebol rendeu sete dos 12 livros do carioca Marcos Eduardo Neves. O cartão de visitas foi “Anjo ou demônio – a polêmica trajetória de Renato Gaúcho”, publicado em 2002, sete anos depois do eterno gol de barriga no Fla-Flu decisivo de 1995. “Troquei a amizade com o Renato pela credibilidade profissional”, lembra o escritor e jornalista.
Não menos polêmico fora o segundo biografado, Heleno de Freitas. “Nunca houve um homem como Heleno” inspirou o filme estrelado por Rodrigo Santoro sobre o enfant terrible do Botafogo pré-Garrincha (2012, direção de José Henrique Fonseca). Marcos volta a retratar um alvinegro no recém-lançado “Loco por ti – As juras de amor eterno entre Loco Abreu e a Estrela Solitária” (Editora Museu da Pelada), escrito com o também jornalista Gustavo Rotstein.
Os 24 capítulos destilam o DNA de um ídolo. Revolvem histórias que inscreveram o atacante uruguaio no imaginário botafoguense. Folclóricas, controversas, intensas. Transcendem a redentora cavadinha do título estadual de 2010.
Num papo por telefone, o biógrafo sublinhou alguns desses traços peculiares do jogador e lamentou a estiagem de figuras assim num futebol desidratado pela exportação precoce de talentos. Marcos Eduardo Neves contou também como a relação com o Rio e com o Maracanã influenciou o mergulho literário no mundo da bola:
Como as relações com o futebol carioca, com o Maracanã, com o Rio influenciaram a incursão nas biografias esportivas?
Sou carioca do Leblon. Logo me tornei sócio e torcedor do Flamengo. Dei um jeito de virar gandula para ver de perto Zico, Adílio, Leandro. Cresci vendo esse Flamengo. Um sonho. Mergulhei nos bastidores do futebol. Vi juiz pedindo camisa a jogador. Vi a chegada do Renato Gaúcho, de quem acabei amigo. Não à toa Renato viria a ser o meu primeiro biografado.
Ele não curtiu muito…
É, o Renato não gostou, embora muitos leitores considerem a minha melhor biografia. A relação com o Renato azedou, mas criei uma credibilidade no mercado e não parei mais. Procuro sempre escrever sobre personagens que fizeram história no Rio. Gosto de transportar para a literatura a atmosfera carioca.
E a relação com o Maracanã?
Foi muito importante na minha formação de torcedor e de escritor. Mas a relação com o Botafogo também se tornou significativa. Se tem um lugar em que sou muito bem recebido é o Botafogo. Bem, das inúmeras memórias construídas no Maracanã, destaco a minha primeira vez. Meu pai, botafoguense, me levou em 1981 para ver Botafogo x Flamengo pelas quartas de final do Brasileiro. Disse que “veríamos muitos gols”. O zero a zero se arrastou. Um tormento para um garoto de 5 anos. “Cadê o raio do gol?”, eu pensava.
Aí você acabou rubro-negro…
Eu vi a torcida do Flamengo, gigantesca, vaiando o zero a zero, e me identifiquei. O detalhe é que meu pai errou por um jogo. Na partida seguinte, o Botafogo venceria, gol do Mendonça. De qualquer forma, o Maracanã quebra destinos, expectativas. Tem uma forte carga dramática. Concentra a gama de sentimentos humanos: paixão, ódio, inveja, êxtase, frustração.
Qual o seu grande ídolo de arquibancada?
Bem, o Zico é hors concours. Fora o Zico, foi o Renato. Ele me inspirava. Eu colecionava reportagens sobre o Renato. Era já um biógrafo em estado bruto. Só não sabia disso ainda. Na biografia dele, tive que matar o mito para não fazer um livro de fã-clube.
Camisas de times estrangeiros povoam hoje os campinhos. Indicam talvez uma filiação mais frouxa da garotada com os clubes locais. Isso tem a ver com a escassez de ídolos por aqui?
Totalmente. Antes um ou outro podia até ir na pelada com a camisa do Barcelona ou do Boca. Talvez porque tivesse viajado pra fora e quisesse tirar uma onda. Hoje as camisas de times estrangeiros dominam campos, quadras, praças. Isso reflete uma escassez de ídolos, decorrente da saída precoce de talentos. Vivemos uma perda de identificação entre torcedores e jogadores. O Vinicius Jr., por exemplo, nem jogou direito no Flamengo. Se o Zico surgisse agora, ele jogaria uma Taça Guanabara e já iria para a Europa. No Vasco, o torcedor escolhia o ídolo: Roberto, Romário, Edmundo. Hoje, se um jogador desses times pergunta as horas na rua, você nem reconhece. A exceção é o Flamengo, que montou uma equipe à europeia. Todo mundo sabe quem joga.
O Loco Abreu, seu biografado mais recente, ilustra o magnetismo do ídolo, com o qual a torcida se identifica além do mérito esportivo. Das muitas histórias reunidas no livro, qual a mais simbólica da idolatria cultivada pelo atacante no Botafogo?
É a história que abre o livro, sobre a vinda do Loco para o Botafogo. Ele estava perdido num time de menor expressão da Espanha e precisava ficar na vitrine em 2010, ano de Copa. Ao receber a proposta do clube carioca, viu a possibilidade de fazer história. O Botafogo vinha de três vices para o Flamengo no Carioca, e o Loco apostou que comandaria uma virada do Alvinegro. Mesmo perdendo por 6 a 0 na estreia, para o Vasco, ele contagiou os colegas com a sua autoestima absurda. A reação culminou no gol do título, de cavadinha, sobre o Bruno, então um dos melhores goleiros do país. A partir daí, ele seria ídolo para sempre.
E a passagem mais folclórica do Loco?
As superstições, como à da entrada em campo e à do lugar no ônibus, e os foras que ele dava na imprensa revelam os traços mais pitorescos do jogador. Esses casos são contados em dois capítulos. A leitura é deliciosa. Um deleite para os torcedores.
Como nasceu a ideia de biografar o Loco Abreu?
Partiu do Gustavo Rotstein, coautor do livro, que era setorista do Botafogo. Ele me convidou para escrever junto e eu topei na hora. Viramos o Loco e o Herrera (dupla de atacantes uruguaios daquele Botafogo), e o livro ficou campeão.
Em que este livro se distingue das outras biografias esportivas escritas por você, como a do Heleno e a do Renato Gaúcho?
Este livro não é propriamente uma biografia, e sim um perfil biográfico centrado na passagem do Loco Abreu pelo Botafogo. Ainda assim, produz uma radiografia do temperamento, da liderança, das superstições que compõem o ídolo alvinegro.
Você diz que só os polêmicos rendem boas histórias. Alex, biografado em 2015, foi exceção?
Adoro os polêmicos. Não escreveria um livro sobre o Zico ou o Kaká. Ótimos para o vídeo, não como leitura. A biografia do Alex rendeu muito, apesar de ele jamais ter sido polêmico. Rendeu porque o Alex é politizado, articulado, e sem papas na língua. Ele revelou o Lado B do futebol: bastidores de treinos e de jogos, amizades, inimizades. Contou, por exemplo, que o Zinho, já tetracampeão, não se conformava em não ser ele o camisa 10 do Palmeiras. É um dos meus melhores livros.
Você também escreveu “20 jogos eternos do Flamengo”, lançado em 2013. Qual o seu jogo inesquecível?
Fla 3 x 2 Atlético, de 1987, no Mineirão. Como disse o Nelson Rodrigues, a memória de um garoto de 12 anos nunca vai ser esquecida. Foi um jogo dramático. Abrimos 2 a 0, eles empataram. Aí o Renato fez aquela jogada antológica e nos deu a vitória. Emocionante. Inesquecível.
A emoção nos estádios está provisoriamente anestesiada pela falta de público necessária ao controle sanitário. Qual a maior perda do Maracanã sem a galera?
Antes da saudade do público, da vibração, eu já sentia falta do Maracanã raiz, autêntico. Hoje os estádios estão pasteurizados. É preciso colocar uma legenda para identificar o Maracanã.
Que personagem do esporte carioca você sonha ainda biografar?
Adoraria biografar o Edmundo e o PC Caju. Fazem o meu estilo.
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Para Mike Tyson virar o jogo
Éneas de Andrade também frequenta a memória afetiva do Maracanã raiz. Nele viveu de piques, sem jamais ter sido atleta. Não tardou a virar Mike Tyson. O apelido dado pelo locutor Januário de Oliveira honrava a vitalidade do maqueiro nos vaivéns fulminantes entre 1980 e 2010. Vários torcedores devem tê-lo imaginado no lugar do chupa-sangue. (Todo time acaba assombrado por um chupa-sangue.) Fosse hoje, talvez o chamassem de Bolt.
Agora é a vez de o Maracanã acudi-lo num solidário carreto. Jogadores de 17 clubes vão leiloar camisas autografadas na próxima terça (13/4), a partir das 15h. A arrecadação ensaia certo alívio à barra de Enéas. Aos 80 anos, ele enfrenta a cegueira resultante de um glaucoma e outros problemas de saúde agravados pela pobreza.
A iniciativa do Museu da Pelada e da recém-criada Memorabília do Esporte reforça a importância de cuidarmos da nossa história esportiva e dos profissionais que a construíram. Muitos definham no vão do esquecimento.
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Alexandre Carauta é doutor em Comunicação, mestre em Gestão Empresarial, especialista em Administração Esportiva, formado também em Educação Física.