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Por Alexandre Carauta, jornalista e professor da PUC-Rio
Pelos caminhos entre esporte, bem-estar e cidadania
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Viagem ao centro da alma torcedora e carioca

Com uma memória afetiva que sobe a rampa do Maracanã, diretor do premiado documentário "Catarse" evoca vocação agregadora do futebol e do Rio

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Atualizado em 6 jan 2021, 22h11 - Publicado em 7 dez 2020, 12h09

A virada construída em 180 segundos eternizaria-se por telas a fio. Seria recontada no noticiário da tevê, em canais do YouTube, nos infinitos memes das mídias sociais. Nenhum desses registros talvez tão universal quanto o documentário “Catarse”, premiado no festival Cinefoot (disponível a partir de janeiro no YouTube). Ao expor a saga dos torcedores apinhados em Lima para empurrar os batutas de Jesus na decisão da Libertadores, Daniel Brunet não se limita ao roteiro ungido pelos deuses da bola. Narrado em primeira pessoa pelo próprio diretor, o curta ilumina o prelúdio do encontro com o impossível. Mergulha nos traços genéticos do torcedor, nos contornos simbólicos que o distinguem do simpatizante. Uma alquimia capaz de aglutinar apaixonados de outros matizes, outros cantos, outras épocas.

O documento cinematográfico extrapola a conquista histórica. “Fiz, acima de tudo, um filme sobre a paixão”, sintetiza Daniel. Não exclusivamente a paixão pelo Flamengo. Mas a paixão pelas vertigens do futebol, por suas catarses latentes; seus dramas e êxtases, diabolicamente assimétricos; suas pulsações nas artérias sociais. Uma paixão própria do torcedor, sem a qual parece uma extravagância o périplo encarado para vivenciar, no olho do furacão, o duelo decisivo contra o River no fim do ano passado. Era preciso fundir-se à atmosfera que une jogadores e galera numa mesma força magnética. Neste magnetismo se debruça a obra do carioca forjado nas peladas do subúrbio.

Até a catarse despertada com o gol da virada (2 a 1), aos 46 do segundo tempo, quando a prorrogação já se insinuava um milagre suficiente, os 17 minutos do filme montam uma cartografia afetiva do torcedor. Costuram depoimentos carregados de espontaneidade com cenas da transformação da capital peruana numa sucursal carioca. “Parecia a Lapa”, compara o diretor, premiado também por “Plantão Judiciário”, seu documentário de estreia, eleito o melhor curta do Festival Internacional Colaborativo Audiovisual .

“Catarse” passeia por memórias que fecundam e conservam as filiações com o time do peito: a primeira visão da torcida, a influência familiar, o contato com os ritos da arquibancada – ora carnaval, ora catedral de silêncio e angústia. Hóstias de uma devoção universal.

Num papo bem-humorado, digno das resenhas regadas a futebol, o jornalista e documentarista Daniel Brunet, ex-repórter do jornal O Globo,  conta bastidores da gravação e detalha, com o olhar que quem há 20 anos radiografa a cidade por ofício, como o esporte, o berço suburbano e as andanças pelo Rio jogam por música. Orquestram a vida profissional e familiar. Assim confirma o pedido já recorrente do filho João, de 3 anos: “Papai, vamos botar a camisa pra ver o Mengão”. Aí não é catarse. É glória.

Torcedores do Flamengo em frente a um estádio de futebol
Cinefoot: reconhecimento à obra (Divulgação/Reprodução)

Como nasceu a ideia do documentário?

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Quando organizei a viagem para Lima, pensei que renderia um bom filme. Seria sobre o dia mais feliz das nossas visas (dos torcedores rubro-negros). Achava que o Flamengo ganharia com certa facilidade. Depois, ao ver as imagens, percebi que o filme era sobre os sentimentos. É um filme sobre a paixão.

Isso dá ao documentário uma certa feição universal…

Sim, expõe uma paixão que não guarda fronteiras. Tanto que busquei reunir torcedores de outros lugares além do Rio: Goiânia, Florianópolis, Rússia. Todos buscavam, e buscam, eternizar uma paixão despertada, na maioria das vezes, por laços familiares.

Foi o seu caso?

Pior que não (risos). Meu pai não tem time. Minha mãe é Botafogo. Virei Flamengo por influência dos amigos de colégio e pela boa fase do time. A paixão se instalou de vez com o título brasileiro de 1992. A vibração da conquista nos aproxima ainda mais do clube, intensifica o aumento de torcedores. Isso voltou a acontecer, com muita força, no ano mágico de 2019.

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Estar no estádio é imprescindível para cultivar essa paixão, daí a jornada até Lima?

Claro. Curto muito ver o jogo, seu andamento. Mas sentir sua atmosfera é ainda mais importante. Comprei a passagem para ver de perto a final da Libertadores quando o Flamengo empatou com o Grêmio ainda no primeiro jogo da seminal. Queria sentir aquela energia única em torno da decisão.

As imagens do documentário mostram as ruas da capital peruana transbordando essa energia. Uma energia também muito carioca, não?

A maioria daqueles torcedores fez uma imersão lá de três dias. Lima virou um pedaço do Rio. A gente se concentrava numa rua conhecida como calle das pizzas, cheia de bares. Parecia a boemia da Lapa, com rodas de samba.

Falando em Rio, como a cidade pulsa na sua veia de torcedor e de documentarista?

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O futebol e a cidade se juntam na minha formação de torcedor, e na minha personalidade. Quem nasce no subúrbio, como eu, é levado a conhecer outros lugares do Rio, a andar pela cidade. Isso amplia os horizontes, os olhares. O esporte também leva a circular pelos bairros, e a construir relações, amizades. Percorria o Rio pra jogar bola.

Peladeiro profissional…

Com orgulho (risos). A pelada aproxima as pessoas. Tem a cara do Rio.

Quais os seus campinhos de estimação?

O campo da Light, no Grajaú. O Aterro, claro. E especialmente o campinho da praça do Cetel, na Vila da Penha, perto da Vila Kosmos, onde me criei. Tem ainda o campo de areia do Quitungo, em Brás de Pina. Era cercado da mística de ter revelado o Romário.

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Você jogava, ou melhor, joga em que posição?

Lateral-esquerdo.

Algum jogador, em especial, o inspira?

Leandro (ex-lateral do Flamengo e da seleção nos anos 1980). Jogava uma barbaridade.

Mas o Leandro era lateral-direito…

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Não importa. Para mim, foi o maior entre os maiores laterais.

Voltando ao filme, as imagens também carregam uma certa saudade tribal, de estar junto, como fazíamos antes da pandemia. Qual o impacto no torcedor da circunstancial privação da arquibancada?

A sensação é de que falta um pedaço na vida. Não ir ao Maracanã tira de mim um convívio essencial, uma experiência que vai de imaginar o jogo e encontrar os amigos até vivenciar, como eu disse, uma energia singular. Minha memória afetiva sobe a rampa do Maracanã. O estádio é uma extensão da convivência plural, diversa, que faz do Rio uma cidade especial.

Esse pulsar move catarses urbanas e, de certa forma, redime os velhos problemas da cidade?

Acredito que sim. O Rio conserva uma vida pulsante, com calçadas vivas. Vivia isso no subúrbio. Vivo hoje em Copacabana, para onde me mudei há dois anos. Temos os nossos problemas de metrópole, claro. Mas temos a alegria do rico convívio, de gente bem-humorada, aberta às relações humanas. É incrível também o contato com a natureza, com a Lagoa, com o verde, com a praia.

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Alexandre Carauta é jornalista, professor, doutor em Comunicação, mestre em Gestão, especialista (MBA) em Administração Esportiva, também formado em Educação Física.

 

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