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Por Alexandre Carauta, jornalista e professor da PUC-Rio
Pelos caminhos entre esporte, bem-estar e cidadania
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“Carol exerceu o direito inalienável à expressão”

Para professor de Direito Desportivo da PUC, nenhum regulamento ou tribunal pode privar a jogadora de vôlei da garantia constitucional

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Atualizado em 5 out 2020, 08h57 - Publicado em 4 out 2020, 12h02

Marvin Gaye ficaria rouco de tanto perguntar “what’s going on?”. O refrão nomeia o álbum de 1971 recém-alçado ao topo da lista dos 500 melhores discos organizada pela revista Rolling Stone. Outros motivos menos nobres o mantêm atual. Aplicaria-se, por exemplo, ao espanto diante das distorções morais e normativas que levaram a jogadora de vôlei de praia Carol Solberg ao banco dos réus. Não fosse uma realidade paralela, lá estariam os censores.

A represália direciona-se à manifestação contrária ao governo embutida, há 15 dias, numa entrevista ao SporTV, logo após ter conquistado o bronze no Circuito Nacional. Pelo desabafo de cinco segundos, Carol pode receber multa de até R$ 100 mil e ficar suspensa por seis meses. Teria descumprido o regulamento da competição: atletas não devem emitir opinião “que possa, direta ou indiretamente, prejudicar a imagem da CBV e/ou os patrocinadores e parceiros comerciais das competições”.

Aos olhares obtusos, Carol cometera uma gafe com o banco estatal que deposita mais de R$ 55 milhões anuais nos cofres da Confederação de Vôlei. Um patrocínio bem-sucedido de quase 30 anos. A punição à jogadora seria uma resposta para reduzir o risco de perdê-lo. Se disso depender a manutenção, aí sim alguma coisa estaria fora da ordem.

Caso a tática prevaleça, os danos não se restringiriam à atleta. Perderiam o vôlei, a CBV, o público, o patrocinador, a ética, o país. Não é difícil imaginar quem, noves fora, arcaria com essa conta.

As perdas excederiam o tangível.  Incidiriam sobre valores e patrimônios simbólicos, arranhados pelo assalto à liberdade de expressão. Certamente os responsáveis não perceberam o tiro no pé.

As paredes do Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) vão testemunhar, na próxima terça, mais do que um desperdício de tempo e dinheiro, mais do que uma desigualdade entre pesos e medidas. Periga acompanharem um desencontro com a História.

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(Pixabay / Roman Möseneder/Reprodução)

O desacerto ultrapassa as punições “desproporcionais” previstas para Carol, assim qualificadas pelo presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Felipe Santa Cruz. Ele pretende apontar a discrepância quando defender a jogadora no julgamento.

Bem mais grave é o contorcionismo de princípios democráticos, constitucionais, esportivos. Revela-se com a simples leitura do nono parágrafo do artigo 5º da Constituição: “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação”. Como se deve saber, nenhuma lei ou regulamento está acima da garantia constitucional.

A Confederação de Vôlei a evocou implicitamente há dois anos, quando os jogadores da seleção Wallace e Maurício sinalizaram apoio ao candidato do PSL à Presidência. A cena seguiu-se à vitória sobre a Itália no Mundial de 2018. Ganhou a internet. Não despertou repreensão dos chefes. Pelo contrário. Ficou exibida na página eletrônica da CBV. A neutralidade só veio com a repercussão negativa da postagem. Depois de retirá-la, a confederação lavou as mãos: “Não compactua com manifestação política, porém acredita na liberdade de expressão. Por isso, não se permite controlar as redes sociais pessoais dos atletas, componentes das comissões técnicas e funcionários da casa”.

A fé na liberdade não resistiu às duas palavras emitidas por Carol ao microfone da emissora. Deu lugar ao repúdio, caligrafado com veemência numa nota oficial. Desta vez, a liberdade “em nada condiz com a atitude ética que (sic) os atletas devem sempre zelar”. O último parágrafo carrega a promessa de “todas as medidas cabíveis para que fatos como esses, que denigrem a imagem do esporte, não voltem mais a ser praticados”. Que fatos?

Nem a Comissão de Atletas prontificou-se a alertar que o perigo do filme queimado deriva menos das palavras de Carol do que do pito e seus desdobramentos. Ou a comissão também não enxergou o óbvio, ou mistura as estações. Distancia-se de quem representa e do que representa.

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(Pixabay / Miguel Á. Padriñán/Reprodução)

Esporte é cidadania. Integra, desde 1948, o conjunto de direitos universais declarados pelas Nações Unidas como fundamentos “da liberdade, da paz e da justiça no mundo”. O Brasil é um dos 193 Estados-membros signatários deste pacto firmado para reduzir  a chance de recrudescimento dos horrores nazifascistas. Significa, entre outros compromissos, dar voz – especialmente aos silenciados –, não o contrário. Eis a atitude pela qual atletas, e todos nós, devemos zelar.

A diretriz, não custava alguém lembrar, também está na Carta Olímpica, rascunhada por Pierre de Coubertin em 1899. Os 61 artigos regulamentam a estrutura político-administrativa dos Jogos e as bases do Olimpismo, “estilo de vida baseado no respeito aos princípios éticos universais”. Deles faz parte o direito de pensar e se expressar livremente.

O toco imposto à vice-campeã mundial de 2013 contraria esses mandamentos universais. Dificulta a “elevação crescente do nosso prestígio internacional” ambicionada no Código de Ética da CBV. Convenhamos, não pega lá muito bem, no mundo democrático, desrespeitar preceitos constitucionais. Convém passar a bola ao professor de Direito Desportivo da PUC-Rio, Job Gomes::

“A manifestação da Carol é um direito inalienável, garantido pela Constituição. A liberdade de expressão é um pilar do Estado democrático de direito. Se uma pessoa não puder se manifestar contra o governo, qualquer governo, dentro ou não de uma atividade esportiva, isso pode ser chamado de qualquer coisa, menos de democracia. Não há lei, estatuto ou tribunal que possa afrontar essa norma constitucional, que possa impedir uma manifestação dessa natureza, como a exercida por Carol”, esclarece o especialista, autor de “Direito desportivo: interesses econômicos no futebol moderno” (Grama Editora, 2018).

(Pixabay / Peter H./Reprodução)

Qualquer mordaça – explícita ou dissimulada – configura uma afronta constitucional. Deveria ser condenada, não incluída no time dos absurdos naturalizados.

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Também não se deve confundi-la com o combate às apropriações oportunistas de propriedades esportivas por propagandas políticas, econômicas, religiosas etc. Foi o que operaram, na interpretação da CBV, as equipes masculina e feminina do Sesi-SP em 2016. Os uniformes estampavam a campanha contra a volta da CPMF organizada pela Federação das Indústrias de São Paulo. Os apelos do presidente da Fiesp, Paulo Skaf, mostraram-se insuficientes para derrubar a advertência e a proibição determinadas pela Confederação de Vôlei.

Tangenciaria a cegueira, ou o ardil, empregar interpretação semelhante às iniciativas de Wallace, Maurício e Carol. Nada fizeram além de exercerem o direito a expressar o posicionamento político. Pouco importa se à direita, à esquerda, ao centro.

Igualmente esdrúxulo é depositar na manifestação da jogadora uma ameaça ao patrocínio mais longevo do esporte nacional. Sua permanência sujeita-se, ou deveria sujeitar-se, a critérios técnicos, como as contrapartidas social, esportiva e financeira. Condicioná-la ao silêncio de atletas que se opõem ao poder central seria não só um desvio ético. Seria um desconcerto à natureza e aos objetivos do banco de capital misto sem o qual o vôlei brasileiro não teria chegado onde chegou.

Iniciado em 1991 e extensivo a várias categorias, o patrocínio do Banco do Brasil rende à CBV aproximadamente R$ 55 milhões anuais (beirou R$ 70 milhões entre 2013 e 2016). Sem o continuado aporte, teria sido impossível a invejável ascensão de praticantes, craques, fãs, títulos e exposições midiáticas nos últimos 30 anos.

O acordo será revisto no fim do ano. Renová-lo não dependeria da continência política de atletas, treinadores/as, dirigentes. Relacionaria-se ao lucro e ao retorno de mídia projetados. Há quatro anos, correspondiam a cinco vezes o valor investido.

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Parâmetros assim municiam as avaliações executivas de patrocínio. Contaminá-las com cabrestos ideológicos ou conveniências eleitorais representaria, no barato, um prejuízo moral e um risco econômico. Só faria algum sentido numa realidade paralela. Os doutores do STJD decidirão se nela embarcará o nosso vôlei. Por via das dúvidas, deixemos Marvin Gaye de prontidão na vitrola.

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Num caminho oposto, crescem iniciativas globais para assegurar a atletas o pleno direito à expressão. Ele segue aparado por regulamentos do setor e aparelhamentos ideológicos. Competidores/as não podem exercê-la no espaço onde atuam (quadra, campo, pista, tatame, piscina), menos ainda em cerimônias de premiação. A associação Global Athlete pressiona o Comitê Olímpico Internacional para permitir a liberdade irrestrita (como se houvesse outro tipo).

A cobrança alinha-se ao engajamento de atletas mundo afora em causas sociais e ambientais. Um dos exemplos mais contundentes é a adesão de jogadores e jogadores de vários esportes americanos ao movimento antirracista Black Lives Matter (Vidas Negras Importam).

Outro caso não menos representativo aconteceu na quarta-feira passada. Comandado por Landon Donovan, o San Diego Loyal abandonou a partida contra o Phoenix Rising, pela USL, a segunda divisão do futebol nos Estados Unidos, em protesto às ofensas homofóbicas dirigidas ao jogador Collin Martin. O Loyal ganhava por 3 a 1.

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O ex-camisa 10 da seleção americana não engoliu a falácia, tantas vezes repetida, de que “isso faz parte da cultura do futebolística”. Os 16 anos nos gramados, decisivos ao salto do futebol nos EUA, não lhe facultaram concessões a preconceitos. Por condutas assim, Donovan é idolatrado além do mérito esportivo. Um exemplo redentor.

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Alexandre Carauta é jornalista e professor, doutor em Comunicação, mestre em Gestão Empresarial, especialista em Administração Esportiva, formado também em Educação Física.

 

 

 

 

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