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Por Alexandre Carauta, jornalista e professor da PUC-Rio
Pelos caminhos entre esporte, bem-estar e cidadania
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Bike como estilo de vida: ciclistas pedem mudanças estruturais na cidade

As pedaladas pelo Rio inspiram novas relações e a transformação dos modelos urbanos

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Atualizado em 5 abr 2021, 16h45 - Publicado em 3 abr 2021, 12h33

O Cristo é testemunha. Toda terça e quinta Vinícius Zimbrão parte às cinco da matina de Botafogo para a Mesa do Imperador, na Vista Chinesa. Pedala 25 quilômetros até o cartão-postal dourado de verde e de vista. “Ver o Rio nascer lá de cima compensa o esforço. É um pódio”, encanta-se o professor e competidor de ciclismo.

O pódio é compartilhado por uma galera crescente. Na contramão da crise, as vendas de bicicletas subiram 50% ano passado. Reflexo da corrida às atividades ao ar livre desencadeada pela pandemia. A frota nacional já ultrapassa 70 milhões de unidades.

A bike – camelo, para os antigos – é um estilo de vida em alta. Movimenta uma indústria turbinada por aplicativos e serviços online. Desperta novas formas de ver e viver o Rio, novas relações e modelagens urbanas.  Impõe ao poder público, e a todos nós cidadãos, amadurecimentos estruturais compatíveis aos ganhos de saúde, lazer, mobilidade sustentável.

“Vinte anos atrás a gente encontrava dez, no máximo vinte ciclistas na Vista Chinesa. Todos se conheciam. Hoje quinhentos passam por ali às terças e quintas”, compara Zimbrão, cuja genética profissional arrancou da infância em São José do Vale do Rio Preto, na serra fluminense: “Usava a bicicleta pra tudo. Coisa de cidade pequena”. Coisa de cidade inteligente.

Ciclista faz manobra em pista cercada de verde
Zimbrão: pedalas frequentes até a Vista Chinesa (Acervo pessoal / Zimbrão/Reprodução)

Zimbrão ensina as técnicas do esporte há aproximadamente três décadas. Desde 2012 conjuga as aulas de spinning com um curso a céu aberto. Forma 25 ciclistas a cada quatro meses. Todos atraídos pela rima entre condicionamento físico, consciência ecológica e interação social. Um mergulho na alma carioca.

Muitos guiam-se pelo encontro com a memória afetiva das pedaladas infantis “Sou ciclista desde que me conheço por gente. A paixão pela bike me acompanha ao longo das mudanças de cidade e país”, conta o presidente da Oi, Rodrigo Abreu.

Rodrigo Abreu no trajeto até a Prainha
Rodrigo: bike renova fôlego para o trabalho (Divulgação/Reprodução)

Ainda é madrugada quando Rodrigo ruma, três vezes por semana, para Paineiras, Sumaré, Prainha. Extrai do hábito novos olhares sobre o Rio. Renova também o fôlego para a maratona no escritório: “O ciclismo é o meu antídoto contra o estresse de uma vida executiva de altíssima intensidade”.

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Antídoto especialmente milagroso nesses tempos bicudos. “É o que tem salvado a mente”, alivia-se a jornalista Rafaela Pereira. Nenhum estresse resiste às brumas matinais do Sumaré ou aos primeiros raios alaranjando a curva do S, no Alto da Boa Vista. Instantes eternizados ao lado do marido Peter.

Eles seguem a cartografia comum aos ciclistas incorporados à cena carioca. Cruzam a imbatível costura do mar com a montanha. Nos fins de semana, dão uma esticada ao Bike Park de Petrópolis e a trilhas de Vassouras.

Ciclista sobre ladeira de terra
Rafaela intercala trajetos de asfalto e terra (Acervo pessoal / Rafaela Pereira/Reprodução)

Faz dois anos que Rafa sacia o apetite ambiental no cardápio das pedaladas. Intercala asfalto e terra com pitadas de aventura. Reforça a tendência mista: “Mais pessoas buscam uma bicicleta de estrada, para facilitar as subidas até os melhores mirantes, mas resistente a trilhas moderadas. A modalidade se chama gravel, referência ao piso de cascalho que essa bike suporta”, explica Zimbrão, também embaixador do Novembro Azul, campanha de prevenção contra o câncer masculino.

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Afinada a cada uso – estrada, montanha, gravel –, a orquestração da bicicleta e dos acessórios lubrifica o cultivo de amizades. Lojas e oficinas, como as da Pacheco Leão, no Jardim Botânico, revelam-se clubes informais. Dissipam as fronteiras entre veteranos e iniciantes, profissionais e amadores. Entre integrantes de assessorias ou grupos especializados e ciclistas autodidatas.

Nem o convívio remoto exigido pelas restrições sanitárias freia o intercâmbio de experiências, histórias, dicas. Nelas a executiva Júlia Paletta pavimenta tanto a rotina sobre duas rodas quanto a intimidade com a nova morada:

“Sou de Minas, e vim para o Rio depois de ter morado na China. A turma do pedal me acolheu como se já me conhecesse. O espírito acolhedor faz a diferença, assim como a proximidade de uma natureza deslumbrante. Bastam alguns quilômetros de pedalada para estamos numa floresta”.

Ciclista pedala em ciclovia do Rio
Júlia encanta-se com fartura de natureza e afeto (Acervo pessoal / Júlia Palletta/Reprodução)

Rodrigo Abreu também degusta a vocação agregadora da turma do pedal. No Rio desde 2013, ele lembra: “A bike me ajudou a fazer novos amigos, a conhecer a cidade por ângulos diferentes e a me sentir acolhido. Não fosse assim, não viveria as experiências de estar em Barra de Guaratiba, Prainha, Grajaú-Jacarepaguá, Alto, Paineiras, Cristo e tantos outros lugares incríveis para onde a bike me levou e continua me levando”.

O deslumbre agradecido de Rodrigo, Júlia, Rafaela e demais ciclistas multiplicados pela cidade – principalmente na Zona Sul e na Barra – confronta-se com a necessidade de melhorar o acesso, a conveniência e a segurança dessa prática ascendente porém ainda distante da maioria da população. (Uma bike de ciclismo não sai por menos de R$ 3 mil.)

Os deveres de casa envolvem mais do que reformar e ampliar os 400 quilômetros de ciclovias cariocas. Tampouco limitam-se a programas de incentivo pontuais e ao bem-vindo aporte de competições como o Grangiro, disputado mês passado em Búzios, e o UCI Gran Fondo, programado para agosto.

O salto para uma cidade plenamente amigável à bicicleta suscita uma revisão do espaço urbano, como pregava o geógrafo Milton Santos (1926-2001), entre outros bambas do pensamento crítico aplicado na arquitetura social. A reflexão profunda em torno do modelo urbano desejável – humanitário, inclusivo, criativo – fundamentaria políticas públicas e investimentos privados que potencializem as pedaladas como vetores de saúde, bem-estar, integração, mobilidade, responsabilidade socioambiental.

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Rodrigo e Zimbrão enfatizam o relevo educacional nesse processo. “A bicicleta ocupa um espaço crescente em diversas cidades no mundo. A educação cidadã é decisiva ao avanço”, evoca o professor. O executivo completa: “Precisamos de uma conscientização, principalmente dos motoristas, de que os ciclistas têm de ser respeitados e protegidos. Tanto os que praticam por esporte quanto os que usam a bicicleta no dia a dia para se locomover”

Pequenas grandes transformações largam assim – da educação, do senso comunitário, da cidadania. Não custa recordar a distinção feita pelo dramaturgo Augusto Boal (1931-2009) no documentário “Utopia e Barbárie”, de Silvio Tendler:

“Todo cidadão deve ser engajado. Viver em sociedade não é andar por aí. Isso é vegetar em sociedade. O verdadeiro cidadão é aquele que transforma a sociedade”.

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Alexandre Carauta é doutor em Comunicação, mestre em Gestão Empresarial, especialista em Administração Esportiva, formado também em Educação Física.

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