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Por Daniela Name, crítica e curadora de arte
Arte e tudo aquilo que a visita
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Os jardins de Frederico Morais

No mês dos 50 anos dos 'Domingos da criação', o reconhecimento ao caminho percorrido pelo crítico e curador

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Atualizado em 28 jan 2021, 16h24 - Publicado em 28 jan 2021, 10h58

Os 50 anos dos Domingos da Criação, realizados em 1971 no MAM do Rio, foram completados neste janeiro. Sem abraço, sem arte e sem festa, no isolamento mais do que necessário exigido pela continuidade da pandemia, o que é o triste avesso desse marco para a arte em nosso país e para a história recente da cultura carioca. A data sucede outro cinquentenário marcante, que, no ano passado, início do nosso pânico, mal foi lembrado: o da exposição Do corpo à terra, realizada em abril de 1970, em Belo Horizonte. Um nome está por trás dos dois eventos, fundamentais para a estruturação e o vigor do que hoje entendemos como arte contemporânea brasileira: o do crítico Frederico Morais.

Se hoje sou crítica de arte, e passo a ocupar esse generoso espaço cedido pela Veja Rio, é porque Frederico veio antes de mim. Nossos caminhos e pousos precisam contemplar o peso e a alegria dos antecessores; ecoar seu lastro. E é por saber de Frederico, e de tudo que fez e escreveu, que entendo o quanto é fundamental a luta para não ceder à superficialidade da lacração – lógica das redes sociais e de tempos extremos – e costurar as palavras a partir de alguma vertigem, e do embate real com a pesquisa. Também é pensando em Frederico, e em sua afirmação de que “arte é o que eu e você chamamos de arte” que pretendo fazer desta coluna um território aberto ao entendimento geral, e não apenas de supostos “iniciados”. Profundidade não é sinônimo de pernosticismo.  Os desdobramentos da crítica, da análise histórica ou do viés curatorial podem ser condensados a um ponto compreensível, sem abrir mão de suas camadas; sem, enfim, deixar de conciliar o pensamento denso com simplicidade e certa ternura. Jamais.

Frederico Morais e parangolé de HO
Frederico Morais em 1968, usando o parangolé
“Guevarcália”, de Hélio Oiticica, em atividades nos jardins do MAM (Claudio Oiticica/Projeto HO/Divulgação)

Escrevo com duas imagens de Frederico inundando meu olhar pelo lado de dentro. A primeira é de 28 de julho de 1968, foi clicada por Cláudio Oiticica (acervo Projeto HO) e mostra curador usando o parangolé Guevarcália, de Hélio Oiticica, feito em homenagem ao líder revolucionário Ernesto Che Guevara, morto na Bolívia menos de um ano antes. Já professor do MAM, do qual se tornaria coordenador de cursos no ano seguinte, Frederico realizou uma série ações aos domingos, com atividades ao ar livre, nos jardins do Aterro. Esses encontros hoje são considerados o marco seminal da arte pública no Brasil. Hélio levou os ritmistas da Mangueira, que haviam sido barrados pelo museu três anos antes, no Opinião 65, para participar do conjunto de performances e trabalhos que ele batizou, com a ajuda do poeta Rogério Duarte, de Apopocalipopótese; Lygia Pape apresentou seu trabalho interativo Ovo, fundamental para o entendimento da relação expansiva entre essa geração de artistas brasileiros e as vanguardas do início do século XX; Antonio Manuel mostrou pela primeira vez suas Urnas quentes. Tudo isso em pleno recrudescimento da ditadura civil militar brasileira.

Cidade lúdica; criatividade inata

Em 1969, Frederico desenvolveu o que chamou de Plano-piloto para a futura cidade lúdica. O texto, desenvolvido para um colóquio de museus e posteriormente publicado na íntegra jornal “Correio da Manhã”, foi recuperado em Domingos da criação – Uma coleção poética do experimental em arte e educação (Mesa, 2017), livro fundamental organizado por Jessica Gogan com o próprio curador. Frederico defende, no Plano-piloto, princípios que embasariam toda a sua trajetória, e que até hoje podem ser um farol para alguém que queira fazer da arte sua matéria de trabalho. Para o autor, “todas as pessoas são inatamente criativas (…) e só não exercem seu potencial criador se são impedidas a isso por algum tipo de repressão”. Ele define ainda a cidade como um “museu invisível”, “a extensão natural do museu de arte” e deveria ter todos os “seus salões ocupados”. Em tese que seria ampliada pela existência das redes sociais e sua avalanche de imagens, o crítico já afirmava que os dispositivos da época, como a TV e as revistas, cumpriam melhor a tarefa de “mostrar” do que o museu, e que este deveria se abrir, de modo interdisciplinar e sensorial, para as atividades experimentais, envolvendo o mais amplo espectro da população.

A ideia de uma cidade ocupada dá o tom da mostra Do corpo à terra, em 1970, na qual Frederico retorna à sua Minas natal, em pleno governo Médici. Ele convida jovens artistas como Cildo Meireles, Luiz Alphonsus, Thereza Simões, Artur Barrio e o já citado Hélio Oiticica para a criação de obras efêmeras nos jardins ao lado do Paço das Artes, em Belo Horizonte. Certamente voltarei a Do corpo à terra em textos futuros; no momento digo apenas que o conjunto de obras geradas na mostra marcaria de forma definitiva a arte brasileira a partir dos anos 1970, e seria fundamental, ainda, para catapultar a carreira dos jovens artistas participantes, a maioria deles com menos de 25 anos.

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Frederico Morais
Frederico carrega papel que seria usado pelo artista Carlos
Vergara num “Domingo da criação”, em 1971 (Autor desconhecido/acervo Frederico Morais/Divulgação)

Dos jardins de BH volto aos do MAM, e chego finalmente à segunda imagem que insiste na tela da minha memória: uma fotografia de autor não identificado, parte do acervo de Frederico, que mostra o crítico com parte do corpo coberto por enorme pedaço de papel craft. O material seria usado pelo artista Carlos Vergara em uma das intervenções do “Domingo de papel”. Radicalizando a investida nos jardins realizada em 1968, Frederico propunha, nos Domingos da criação, que artistas e visitantes se misturassem em uma processo de cocriação (“No fazer criador, todos se confundem”, escreveria mais tarde).  Essa mistura acontecia a partir de propostas ligadas a um material (papel, tecido, terra) ou mesmo à experiência do som ou à ideia de fio, tanto fluxo quanto desenho. Percorrer os registros desses dias que não vivi é constatar que Frederico cumpre à risca seu “plano-piloto”, tanto na busca de uma “cidade lúdica” e de um “museu invisível” quanto na afirmação de que todo crítico e curador deve ser também um educador, “mestre ignorante” aberto ao aprendizado das experiências daqueles com quem interage.

Os tempos que atravessamos são obscuros e iconoclastas, e as as imagens artísticas são atacada por conservadores e perseguidas no tribunal de likes e cancelamentos. Percorrer os jardins de Frederico Morais é entender que esses ataques só serão aplacados quando os que vivem da arte estenderem suas pontes na direção da cidade, e aos ocupantes do museu invisível.

Placa de Frederico Morais no MAM, 1971,
A convocação da cidade, “museu invisível”, para os “Domingos da criação”, em 1971 (Beto Felício/Divulgação)

 

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A coluna tem a partir desta quinta (28) periodicidade quinzenal, que pode ser bagunçada de acordo com os meus desejos e o inesperado da vida.

 

 

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