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Por Daniel Sampaio: advogado, ativista do patrimônio, embaixador do turismo carioca e fundador do Instagram @RioAntigo
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Dia da mulher: memórias do machismo na imprensa carioca

O curioso caso da "Fon-Fon!", a revista carioca que fazia chacota da luta pelos direitos das mulheres no início do século XX

Por Daniel Sampaio Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 8 mar 2021, 18h03 - Publicado em 8 mar 2021, 14h10

Por ocasião do Dia Internacional da Mulher, pus-me a pesquisar imagens para um “post” no Instagram do @RioAntigo. Encontrei a interessante imagem que ilustrou a capa da Revista “Fon-Fon!”, na data de 16 de maio de 1914. A gravura, assinada por “Raul” e por “Brun”, mostrava um grupo de seis sufragistas; atrás delas uma multidão. Minha impressão inicial foi a de que a “Fon-Fon!”, importante periódico semanal carioca que circulou entre 1907 e 1958, tivesse uma pauta bem avançada para 1914. Em seu slogan, a “Fon-Fon!” declarava-se um “Semanário alegre, politico, crítico e esfusiante”. Não era uma revista feminina, mas muitas de suas pautas navegavam pelo universo temático mais “leve”, reservado às mulheres de então — moda, comportamento, assuntos do lar.

Seguindo adiante um pouco mais na minha pesquisa, encontrei uma publicação da Comunicação Social da Prefeitura do Rio, chamada “Cadernos da Comunicação – Série Memória”, numa edição especial que comemorava o centenário da Revista “Fon-Fon!”. Nesse documento busquei o termo “sufragistas” e achei duas ocorrências. A primeira era já no prefácio, escrito pelo então Prefeito César Maia, que, exaltando a modernidade da revista, dizia:

“Sem esquecer o envolvimento da revista em campanhas como a das “sufragistas”, que defendiam o voto feminino”.

Mais à frente, aparecia a imagem da tal capa de 1914, com a legenda:

“Em maio de 1914, a revista esteve engajada na campanha das “sufragistas” que, inovadoramente, faziam a apologia do voto feminino no Brasil. Uma mídia, sem dúvida, avançada para aqueles tempos de machismo explícito e de preconceitos sexuais hipócritas.”

A junção daquela capa quase revolucionária com essa informação trazida por pesquisadores da ilustríssima Fundação Casa de Rui Barbosa — o texto tinha como base um encontro realizado nessa instituição, no ano anterior, por ocasião do centenário da “Fon-Fon!” — fizeram-me pensar com alegria que estava diante de uma publicação “à frente de seu tempo” por sair em defesa do feminismo numa época para nós tão distante.

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Quis então saber mais sobre esse envolvimento dessa importante revista numa campanha que seria tão polêmica para a época. Já agradeço de antemão à minha, à sua, à nossa Biblioteca Nacional, que conta com uma excelente hemeroteca digital, lugar onde se pode vasculhar periódicos históricos do Brasil com uma tremenda qualidade de visualização.

Na primeira olhada, usando o termo “suffragista” (essa era a grafia da época) e também o termo “suffragettes” (tradução francesa usada também nos países anglófonos) para a busca nas edições históricas da “Fon-Fon!”, eis que me deparo com uma série de textos que desmentem abertamente esse mito de uma revista vanguardista defendido pela publicação da Prefeitura.

Em 15 de janeiro de 1910, a primeira menção da revista às sufragistas já dá o tom da cobertura histórica sobre o tema, em nota sobre a prisão de feministas inglesas que se recusavam a usar os uniformes da prisão, em protesto, permanecendo nuas:

“O peor é que, entre ellas, o número das velhas e das feias parece ultrapassar o das moças e bonitas!”

Em 10 de setembro de 1910, no obituário de uma sufragista alemã, a seguinte pérola:

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“Suffragistas são todas as feministas que no voto, vêem o meio para obter aquellas reformas sociaes e civis, que inutilmente as mulheres reclamam.”

Em outubro do mesmo ano, uma nota sobre um cortejo de suffragettes em Londres dá destaque à beleza de algumas das manifestantes, subestimando o movimento:

“Tambem as suffragistas conhecem o valor da belleza e como ella serve mais do que qualquer outro argumento para garantir a atenção masculina.”

Os anunciantes da “Fon-Fon!” não deixavam barato. No anúncio do tônico capilar “Tricofero de Barry”, de 1911, o texto publicitário exaltava as “propagandistas” desse produto:

“As mulheres discretas fogem das vulgaridades e politiquices, para se dedicarem a outro gênero de especulações e propagandas, mais em harmonia com as delicadezas do seu sexo.”

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Charge de 5 de abril de 1913 - Revista
Charge de 5 de abril de 1913 – Revista “Fon-Fon!” – (Hemeroteca da Biblioteca Nacional/Reprodução)

Na edição de 9 de março de 1913, um trecho de texto assinado pelo pseudônimo “Gustave Téry”:

“Não há nada mais lisonjeiro para o homem do que o feminismo. (…) Quando uma mulher se torna feminista, é que não póde mais conter a immensa admiração que o homem lhe inspira.”

Em julho do mesmo ano, a “Fon-Fon!” traz a “brilhante” conclusão:

“É curioso registrar que esse movimento feminista, que se alastra por todo o mundo, deixa inteiramente indifferente a mulher brasileira. (…) Talvez seja porque a mulher brasileira tem juizo de mais; ou ambição de menos. Qualquer termo desta alternativa lhe é lisonjeiro.”

Em 11 de julho de 1914 — ou seja, menos de dois meses após a capa em destaque —, o pseudônimo “V. de C.” diz o seguinte:

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“Uma estatistica informa que a quasi totalidade das suffragettes é constituida assim: solteiras cincoenta por cento; divorciadas, vinte e cinco; viuvas, vinte e cinco… Ora ahi teem os senhores tudo dito.”

E como se não bastasse tamanho absurdo, “V. de C.” acrescenta:

“Um jornal inglez (…) acaba de suggerir o meio eficaz para o extermínio do suffragismo na Inglaterra: (…) deportar as suffragistas para as colonias, onde receberiam por esposos os mais belos especimens da raça negra.”

Cinco dias depois, a revista recomenda a uma sufragista inglesa, conhecida também por sua beleza, que ponha de lado o feminismo e “que se contente em ser uma linda rapariga, pois a natureza deu-lhe um delicioso palmo de rosto”.

Já em 1932, um texto assinado pelo pseudônimo “Andrenio”, descreve uma cena de protesto sufragista em Londres, duas décadas antes:

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“Naquele tropel de mulheres alvoroçadas, a maioria era de feias, velhas, pobremente vestidas. Adivinhava-se nellas a amargura das vidas fracassadas, o rancor pelo homem, que não lhes déra o amor sonhado e pela sociedade, que tambem não lhes déra um lar, um home seguro e confortavel.”

Encontrei muitos outros textos, mas esse foram os que mereceram destaque, pela maior intensidade do absurdo. Impressionou-me a incidência de palavras pejorativas para descrever as sufragistas, como “histéricas”, “energúmenas”, “loucas”, “bizarras”, “violentas”, “criminosas”, “arruaceiras” e “masculinas”. Curiosamente, a revista “Fon-Fon!” era considerada um semanário ilustrado de conteúdo crítico e inovador, uma publicação feita por intelectuais simbolistas, homens que contestavam o positivismo predominante no pensamento de então. Continuavam sendo homens; os tais “homens de seu tempo”, quando o machismo era coisa de gregos e troianos.

Quando muito, os homens da redação de “Fon-Fon!” exaltavam o sufragismo suave, tranquilo e pacífico; aquele das mulheres belas e femininas. Eram homens ditando às mulheres como deviam fazer um feminismo que fosse respeitado por eles. Para mim não resta dúvida: está desmentido o mito de que a revista “Fon-Fon!” teria sido uma “mídia avançada”, “avant guarde”, e que teria se envolvido na luta pelo direito ao voto feminino. Pelo contrário, a famosa revista fez campanha “do contra”, em um ataque aberto e constante às corajosas e pioneiras sufragistas — um desserviço às mulheres do nosso país, que conquistaram o direito ao voto apenas em 1932.

*Daniel Sampaio é carioca do Grajaú. Advogado, memorialista e ativista do patrimônio. Fundador do perfil @RioAntigo no Instagram.

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