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Por Cristiana Beltrão, restauratrice e pesquisadora de gastronomia e alimentação
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Não importa o que você diz, só importa o que você faz

O ideal vegano e a realidade

Por Cristiana Beltrão Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 21 Maio 2021, 09h54 - Publicado em 21 Maio 2021, 01h51

Em 1989, o chef suíço Pietro Leemann abriu o que viria a ser o primeiro restaurante vegetariano da Europa a ganhar uma estrela Michelin. No seu Joia, no início dos anos 2000, comi um prato inteiramente vegano e inesquecível – rara e feliz peneirada de minha cabeça desmemoriada.

Até bem pouco tempo, nossas avós cozinhavam legumes e verduras à exaustão com medo de impurezas e bactérias. Os sabores vinham afogados e mortos ou sufocados por molhos cremosos, que os esqueciam.

Hoje, alguns dos melhores cozinheiros do mundo brincam com as texturas e nuances dos tubérculos, folhas e vegetais. Vêm crus ou pouco cozidos, crocantes, simplesmente chamuscados ou marinados, em preparações absolutamente contrastantes com as do passado. Em 2017, por exemplo, o prato mais delicioso que comi – e incluo aqui todas as carnes e peixes daquele ano – foi o “satio tempesta” (na foto), feito de folhas e vegetais cultivados na horta do restaurante Frantzen, na Suécia.

Sempre achei curiosa a diferença entre o que se diz e o que se faz. Há quem jure ter lido livros que nunca abriu, ter visitado lugares nos quais nunca pôs os pés, ser fã de músicos clássicos que jamais escutou e, até nesse meu mundinho, gente que jura ter jantado em restaurantes famosos sem que nunca lhes tenha cruzado a porta.

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Em “Humano, Demasiado Humano’ – e por favor não durmam com meu aparte filosófico – Nietzsche dizia que se uma pessoa quer, insistentemente e durante muito tempo, parecer alguma coisa, acaba por conseguir, já que fica difícil ser qualquer outra coisa. “No próprio ato do embuste, com todos os preparativos, o tom comovente da voz, da expressão, dos gestos, em meio ao cenário de efeitos, essa pessoa é tomada da crença em si mesma.”.

Quando o assunto é a estratégia em negócios, acreditar no discurso embusteiro pode ser um preço alto demais a pagar.

Em 2018, os cientistas por trás da maior análise feita até hoje sobre os impactos da agricultura nas emissões de carbono chegaram à conclusão de que reduzir o consumo de carne, leite e derivados seria o ato individual mais importante para reduzir o prejuízo ambiental no planeta.

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Pronto! Decidimos, ali, salvar a Terra pelo estômago.

Na ocasião, um professor da universidade de Michigan (que dever ter lido muito Nietzsche), comentou que apesar do mundo inteiro concordar, seria ingênuo acreditar que as pessoas fariam mudanças alimentares só porque seriam importantes para o planeta.

Na última semana, vi Daniel Humm anunciar que converterá seu tri-estrelado Eleven Madison Park, em Nova York, em um restaurante vegano, dada a urgência de atacar a questão climática.

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Nos dias que se seguiram, João Rodrigues, chef do restaurante Feitoria no hotel Altis Belém, em Lisboa, anunciou que reabrirá em 3 de junho com um menu que diminuirá substancialmente a quantidade de proteína animal, dadas as consequências ambientais, de sustentabilidade e implicações na saúde de todos, como noticiou o portal português Mesa Marcada.

Há três dias, no mesmo portal, José Avillez diz que abrirá o seu novo restaurante Encanto, em meados de junho, com 70% de pratos vegetais e o restante com “apontamentos de proteína animal”. Comentou que chegou a pensar em fazer um menu totalmente vegetariano, mas preferiu apenas reduzir consideravelmente a utilização de ingredientes de origem animal, sem fundamentalismos. Achei inteligente.

Escolher ser vegana pelo resto de minha vida em qualquer um dos três restaurantes não seria esforço algum, especialmente se fechasse os olhos e esquecesse do câmbio. Pelas mãos desses chefs, comeria até um pedaço de pedra polida bem temperada, sem reclamar. Além do mais, há muito só como carne vermelha uma vez por semana e sempre morri de amores por vegetais.

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Quando cozinheiros de peso lutam por um mundo mais sustentável, armados de panelas, fouets e fornos, não tenho dúvida da intenção por trás da decisão, do impacto na conscientização dos clientes a longo prazo e, tampouco, do sucesso midiático da mudança de cardápio. Mas e a venda?

Alain Ducasse, que há seis anos escolheu tirar carne e manteiga do restaurante do Plaza Athénée, em Paris, num conceito que batizou de “naturalité”, acaba de ser substituído pelo top chef Jean Imbert. “O respeito da cozinha de Ducasse com relação aos recursos do planeta marcaram a história da alta gastronomia”, disse a direção do hotel, mas tudo indica que o restaurante que reabre as portas em 9 de junho não será assim tão “natural”.

Para fechar a semana com chave de ouro, um estudo do George Mason University College, publicado ontem, analisou os “engajamentos” no Pinterest e descobriu o seguinte: pessoas que curtiram, aplaudiram e puseram uma infinidade de “pins” em receitas saudáveis, ricas em legumes, baixas em calorias, sódio e açúcar, foram as mesmíssimas pessoas que postaram fotos ou vídeos de receitas que de fato executaram em casa, bem ricas em açúcar e gordura animal. Além disso, fizeram mais comentários em posts de pratos menos politicamente corretos.

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A verdade dói, mas é a verdade: as redes sociais têm o poder de criar normas e embaraço em torno de um estilo de vida politicamente correto, mas difícil mesmo é o sujeito dar o salto e fazer a mudança.

Acho admirável e natural que restaurantes de alta gastronomia conduzam o movimento em prol de um mundo mais sustentável, mas cabe a nós a ponta mais importante. Passado o frisson inicial, as curtidas, os reposts, a badalação, é bom lembrar que não importa o que você curte, só importa aquilo que você come.

Tenho fé que nossos filhos comerão melhor que nós, que nos desculpem nossas avós.

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