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Por Cristiana Beltrão, restauratrice e pesquisadora de gastronomia e alimentação
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Tudo pela bottarga

Como são feitas, onde comê-las e com o quê.

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Atualizado em 1 Maio 2021, 10h55 - Publicado em 29 abr 2021, 19h44

Que boneco esquisito. O que é isso?

Tinha, quem sabe, uns 7 anos quando entrei pela primeira vez no escritório de minha mãe, no Departamento de Arqueologia do Museu Nacional. Uma olhada rápida para trás e ela responde, como quem vê um vaso de flores: “é uma criança mumificada” – e volta a atenção para a pedra em suas mãos, que também não era pedra; era: “… um biface lindo do paleolítico inferior”.

Para matar as saudades do tempo em que era, entre outras coisas, a responsável pela coleção egípcia do museu, assistimos ao documentário Os Segredos de Saqqara, na Netflix. Saqquara era a mais importante necrópole de Mênfis, a antiga capital do Egito, e o filme conta dos tesouros de uma das tumbas descoberta nas escavações de 2018.

O que pouca gente sabe é que, no século 19, quando algumas das múmias daquela necrópole foram transferidas para o Cairo, acabaram barradas na alfândega porque os inspetores não achavam a palavra “múmia” em nenhuma das listas de mercadorias com entrada permitida na capital. Fosse aqui, o troço ia parar no STF num calhamaço de 500 páginas e depois de 5 anos seria liberado em três vias, devidamente autenticadas. Lá? Foi fácil… As múmias foram taxadas como “peixe salgado”.

O ritual de embalsamento egípcio tinha um ponto alto: a “abertura de boca”, quando o corte de um cordão umbilical simbólico permitia ao defunto comer após a morte, assim como o corte do cordão do bebê permite que ele comece a comer em vida. Depois disso (cuidado: cenas fortes!), lhe retiravam o cérebro através das narinas com um gancho de ferro e removiam todo o abdômem. O corpo, então, recebia especiarias moídas e outras substâncias aromáticas e era totalmente coberto por natrão (um tipo de sal) por 70 dias. Só depois era enrolado com linho e goma.

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Taxar múmias na alfândega como peixe salgado, portanto, não é doideira de todo. As técnicas de embalsamento – pensem bem – eram muito similares às usadas para preservar peixes e aves.

Lembrei do assunto porque começa agora em maio e vai até julho a temporada da tainha, para a alegria de 42.000 pescadores artesanais que dão conta de 80% da pesca dessa variedade, no Brasil. Aproveitar a visita do peixe para preservar também as suas ovas é prática antiga.

Quem teve a ideia foram os fenícios, comerciantes de tanta coisa, quando encontraram nos pântanos do Nilo um monte de carpas, enguias, tainhas, percas e peixes-tigre. Por que não, vende-los? Murais egípcios do século 10 A.C. mostram que, além da secagem dos peixes, também se extraía os sacos de ovas que eram limpos, salgados, prensados e secos, tal qual fazemos ainda hoje. Desde então, “butarkhah” foi o termo que rodou o Mundo. Derivado da antiga língua egípcia com o árabe significa, literalmente, ‘ova de peixe dentro do seu saco’.

Qualquer peixe que produza ovas pequeninas numa membrana resistente pode ter seus sacos ovarianos curados. Salmão ou truta não funcionam, por exemplo. Poderia falar das ovas de skrei, o bacalhau sazonal da Noruega ou ainda das deliciosas ovas secas de atum da conserveira artesanal que fica no pequenino porto de Favignana, na Sicília, mas sem sombra de dúvida, a ova seca mais cobiçada é a da tainha.

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Macia na textura e delicada no gosto, leva o nome de karasumi, no Japão; avgotaraho, na Grécia; wuyutsu, em Taiwan; eoran, na Coréia; haviar, na Turquia; batarekh, no Egito; e é claro, bottarga, na Itália e no Brasil. Vejam que dá quase uma volta ao Mundo. Até a Rússia, recentemente, começou a produzir bottarga na Criméia depois das sanções que Putin fez à importação de alimentos.

As mais caras do mundo vêm da Sardenha, especialmente pelo longo tempo de secagem e condições climáticas específicas. São lavadas e colocadas em prateleiras de salga até que fiquem brancas; em seguida, outra prancha de madeira vai por cima, com pesos ou pedras fazendo pressão e comprimindo os sacos para que absorvam totalmente o sal, num período que leva até 15 dias. Depois, são secas num ambiente ventilado, num processo que dura até 90 dias. As melhores da ilha, sabidamente, vêm do Lago de Cabras. De cor laranja fosforescente, são compactas, mas macias, graças ao vento Mistral que lhes beija suavemente o rosto até secarem.

Acontece que são necessárias 2.300 toneladas de peixe para se fazer as 150 toneladas de ovas secas produzidas anualmente, só na Sardenha. O Mediterrâneo sozinho não dá conta da demanda, a preços palatáveis. A matéria-prima, portanto, pode ter sido importada do Brasil, do Senegal, Mauritânia, Japão, Nova Zelândia ou EUA. Apesar de os italianos torcerem o nariz para o peixe importado, a verdade é que ninguém vê a diferença já que o que vale mesmo é o processo. Ainda assim, continua caríssima. Custa 200 euros o quilo, com a tainha do Mediterrâneo, e uns 130 quando feita com um peixinho, se bobear, brasileiro.

Neste Verão, como forma de incentivar o turismo, a bottarga mais cara da Itália (talvez do mundo) será oferecida aos turistas que forem para Ogliastra, no centro-leste da Sardenha. Imensa, pesa 1,124kg e foi inicialmente posta à venda ao preço de 500 euros, mas depois decidiram retirá-la do mercado e oferecer daqui a alguns meses, caprichando no marketing do turismo perdido com o Covid-19.

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As brasileiras têm cor de conhaque. Não são tão claras ou caras, até por conta da secagem que é feita em estufas, de 4 dias a uma semana, dependendo do tamanho das ovas. Conservo sempre em alumínio ou papel filme bem apertado, na parte mais quente da geladeira para durarem um ano ou mais. Quando sei que vou consumi-las dentro do mês, guardo num recipiente de vidro com azeite, também na geladeira, para que não fiquem quebradiças ou escureçam. A versão ralada é prática, mas assim como parmesão, resseca muito rápido e, depois de retirada da embalagem original, perde muito em textura. Adoro pura, com azeite e pingos de limão, em cima de ovos mexidos e, é claro, num bom spaghetti di Gragnano.

Se você, como eu, não vai a lugar algum nos próximos meses, no fim de maio começa a pipocar no mercado a bottarga brasileira, da safra 2021. A felicidade pode vir diretamente dos produtores, pelo correio, feito o coração comprido da foto.

Apesar de ser um dos ingredientes que mais gosto no mundo, vale lembrar que os peixes são capturados antes de desovar. É importantíssimo, portanto, comprar de empresas com certificação ambiental e que sigam parâmetros de sustentabilidade. Se não respeitarmos os estoques pesqueiros, o destino da bottarga, assim como o das múmias, é virar item de museu.

OUTROS PREPAROS:

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Na Grécia, as ovas da tainha (képhalos) da Lagoa de Messolonghi – onde morou Lord Byron – vêm envoltas em oito camada de cera de abelha. O karasumi japonês, assim como a wuyutsu taiwanesa, é mais suave porque não é seco por muito tempo e, por vezes, leva levedura de sake ou shochu, durante a secagem. Já a ova coreana é curada com molho de soja e pincelada com óleo de gergelim, na maturação. Tão importante no Japão que é considerado um dos três chinmi (comida de gosto raro) do país, o karasumi deve ser preparado com sacos ovarianos extraídos de tainhas com mais de 70cm, curado com sal de Nagazaki e maturado por até dois meses.

A Poutargue de Martigues, bottarga marselhesa, vem do canal Galliffet que vai dar na região pantanosa de Berre. Uma rede (calen) imensa é colocada no fundo do canal e levantada no momento exato em que as tainhas passam a caminho do Mediterrâneo, para a desova. Até 1922, eram levantadas a mão, pelos pescadores, mas hoje são içadas por motores à gasolina. Gostosas do mesmo jeito. São secas por 10 dias com o produto das salinas que rodeiam o canal e comidas só no mês seguinte.

Da Tunísia, vem a adam hout, que em geral é feita com sal kosher e associada à comunicade judaica da capital.

Em Orbetello, na Toscana, são protegidas pela fundação Slow Food, que cataloga alimentos em risco de extinção. São curadas por apenas 15 dias, o que lhes dá uma consistência bem mais macia, como a de um salmão defumado.

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HARMONIZAÇÃO

Todas as harmonizações sugeridas aqui são preferências pessoais, mas perfeitamente transferíveis.

Bottarga brasileira: espumante Brut Tradicional Adolfo Lona

Karasumi: harmonização chancelada por Alexandre Tatsuya, dono da Adega do Sake –  Junmai Daiginjo Yamadaho, feito com um grão raro e quase extinto na segunda guerra mundial, graças a um agricultor que guardou um saco e salvou a espécie, num esforço que levou 8 anos. Se não esse, outro sake frutado e um pouco mais doce, como contraponto ao sal das ovas.

Poutargue de Martigues: para mim, rima lindamente com um riesling alsaciano.

Bottarga tunisiana (adam hout): comer com boukha, o típico conhaque de figo tunisiano.

Bottarga de Orbetello (Toscana): os locais sugerem com vinho branco seco feito com a uva ansonica, mas prefiro com um bom copo de Franciacorta.

Bottarga da Sardegna: um vermentino do Capichera, produtor que me fez mudar totalmente de opinião sobre a uva. Um vinho crespo e gordo, cheio de pêssegos e damascos, além de salino, bem cítrico na boca e com um amargorzinho no final, o que o faz par perfeito para a bottarga.

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