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Por Cristiana Beltrão, restauratrice e pesquisadora de gastronomia e alimentação
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Não entende de café?

Um bom torrador pode ser seu melhor professor

Por Cristiana Beltrão Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 5 out 2020, 11h47 - Publicado em 5 out 2020, 09h01

Terminada a reunião, não havia muito a fazer em Heidelberg além de comer aspargos brancos. Na região de Baden-Württenberg, que abrange a cidade, só se fala disso: há uma rota turística de 136 quilômetros de aspargos, festival do aspargo, a maior feira de aspargos da Europa, eleição anual da rainha do aspargo e o escambau. Eu precisava mesmo era de um café preto.

Esbarrei numa cafeteria no meio do nada, que por acaso era a única que servia um coado, na cidade. Meus olhos grudaram nas prateleiras.

– Opa! Quem faz sua torra é a La Cabra? Adoro. – comentei com o barista.

– Sim, são nossos torradores. Conhece a La Cabra??? De onde você é?

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– Do Brasil.

– Ah! Tá explicado. Pouca gente comenta sobre torra por aqui.

Queria retrucar que pouca gente comenta sobre torra, também no Brasil, mas preferi guardar aquele olhar bonito sobre meu país e retribuir a gentileza com um sorriso.

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Somos os maiores consumidores e produtores de café no Mundo. Talvez por isso não liguemos tanto para a bebida. A idade média do bebedor iniciante está cada vez mais baixa, já começamos a consumir aos 15 anos de idade, tomamos café 3 vezes ao dia, mas conto nos dedos quem mergulha – com o perdão do trocadilho – na viagem que é o café.

Quem não conhece o assunto sequer sabe por onde começar, mas as grandes marcas de café industrializado há muito entenderam que a TORRA seria o primeiro diferencial marqueteiro percebido pelo consumidor iniciante como “qualidade”. Daí pipocarem nas embalagens os termos “torra clara”, “torra clássica” e outros.

Por muito tempo, infelizmente, a torra excessiva foi usada para esconder defeitos e impurezas do café mal colhido e processado, daí a nossa referência de bebida escuríssima, com gosto tão queimado que tanto fazia ser uma cereja de café, uma pedrinha de rio ou um parafuso.

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Então surgiu o termo “cafés especiais” que, em resumo grosseiro, são aqueles bem produzidos, recém-torrados e devidamente preparados, que atingem ao menos 80 pontos na avaliação sensorial feita por especialistas.

E qual o papel da torra num café especial?

Como diz Emerson Nascimento, barista competente que tem prêmio para tudo que é lado, a melhor analogia é uma corrida de revezamento com bastões: “se a equipe que está na frente passa o bastão para o último atleta, mas ele o deixa cair, de nada adiantou o esforço anterior e todos perdem”.

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O trabalho mais duro começa lá atrás, claro, com o produtor, que tem de escolher variedades, encarar clima, terreno, plantio, colheita e beneficiamento, mas o papel do torrador na corrida é tirar o melhor, tanto do sabor quanto das características do grão que lhe é confiado.

Na sua torrefadora carioca Five Roasters, o café é tratado como um “indivíduo”. Cada espécie, variedade, origem e processo vai resultar em um café diferente e seu maior desafio é achar a torra ideal.

Como um mago da auto-ajuda cafeeira, Emerson é o cara que ajuda o grão a se tornar sua melhor versão. E isso vale também para os tipos de extração. Sim, há torras específicas para um café filtrado, expresso ou bebido com leite, mas em alguns casos, é possível fazer uma “omni roasting”, curva de torra que consegue trazer bons resultados em todos os tipos de preparação. E mais: um mestre de torra competente também nos economiza um trabalho danado, escolhendo aqueles produtores de excelência que fazem só pequenos lotes que dificilmente chegariam às nossas mãos.

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Laís Aoki, sommelière do Oteque, entusiasta e estudiosa da bebida, diz (e eu concordo) que a preferência do consumidor médio à mesa ainda é a torra mais “carregada” que empresta mais corpo e notas de chocolate, caramelo e frutas secas. Mas garante que o perfil vem se ampliando: “há gente interessada em perfis mais originais em todo o Brasil. Ceará, Curitiba e Brasília, por exemplo, vêm crescendo muito como mercados de cafés especiais. E mais: muitas cafeterias mundo afora agora fazem a torra dentro de casa”, como é o caso do próprio Emerson, com sua Coffee Five ou a CoLab, aqui no Rio de Janeiro.

Laís comenta que as cafeterias procuram ter cafés ‘de entrada’ – aqueles do dia-a-dia, com torra mais escura e caramelada – mas aos poucos orientam seus consumidores a migrar para torras mais claras, que fazem bebidas mais frutadas e com mais acidez. É um investimento de longo prazo, na ampliação do leque.

No seu serviço de salão, a sommelière prefere a torra mais fresca possível e com um perfil médio-claro, que combina com a cozinha do restaurante. Para os estrangeiros, em especial, fala do privilégio que é estarem tão próximos das regiões produtoras, e procura quebrar o mito de que café brasileiro só serve para dar corpo à bebida, e não complexidade e elegância. Uma graça de embaixadora.

A torra é só o início da viagem. Daí você continua passeando por grãos e suas notas de degustação, o terroir de cada região, o processo de cada produtor, ampliando seu perfil sensorial. Aviso que é caminho sem volta. Além da carioca Five Roasters, adoro o trabalho da Tocaya, que também faz uma ótima seleção de produtores e micro-lotes ou da Lucca Cafés Especiais (e todas vendem pela internet, para quem não quer sair de casa).

E se você acha isso tudo uma bobagem e vai continuar pedindo só “um cafezinho”, não importa… Não estamos aqui pra torrar a paciência de ninguém.

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