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Por Cristiana Beltrão, restauratrice e pesquisadora de gastronomia e alimentação
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O fim do inútil

O que deve morrer na gastronomia ao fim do isolamento

Por Cristiana Beltrão Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 5 Maio 2020, 12h57 - Publicado em 4 Maio 2020, 20h06

Aparar os excessos, tirar cartilagens, cortar as fibras, raspar os sebos. A gastronomia pré-pandemia me parece, agora, um imenso filé sujo.

Já rezei um terço mental inteiro ao ver um sommelier equilibrar um decanter gigante de cristal finíssimo com bico de garça, geringonça inconcebível para distraídos ou estabanados, num balé de guardanapos de linho e luvas, enquanto eu só imaginava estilhaços pra todo lado como num filme de terror ou pensava no trabalho que devia dar limpar aquele troço.

Já sobrevivi a um falatório interminável antes do jantar, em pé e com frio, que explicava todas as fases de um calendário agrícola ancestral, acompanhado de um bloco de notas, um lápis para anotação de minhas “impressões” e ainda uma caixa com terra de mentirinha para escarafunchar uma batata, brincadeira que pretendia aumentar meu laço com agricultores. Jura?

Também superei um jantar de 28 pratos, 12 amuse bouches e vários zeros à direita na conta, feitos de assados, fritos, ensopados, vindos daqui e acolá, com 185 ingredientes em preparações diferentes, todos muito descritos e alguns batizados, como o pudim de leite da vaca Mafalda ou o pão integral feito com um fermento chamado Astolfo.

Se isso tudo já não fazia sentido então, que dirá agora…

Há um mês, o policiamento dos excessos começou a ganhar ares de perseguição, quando um bilionário americano fez um post (pra lá de inadequado) no Instagram, dizendo que “esperava que todos estivessem seguros” enquanto navegava, rumo ao isolamento social, no seu imenso iate. Desde então, surgiu a hashtag “guillotine2020” como alusão aos degolados na Revolução Francesa, vítimas da própria alienação e falta de empatia.

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É hora de déjà-vu.

O movimento que aboliu os privilégios da monarquia e do clero também deixou desempregados excelentes cozinheiros, confeiteiros, padeiros, saladeiros e assadores que trabalhavam nos palácios da nobreza francesa. E foi essa gente qualificada e com técnica impecável que contribuiu, por acaso, para a proliferação dos restaurantes na Paris do fim do século 18, quando passou a servir intelectuais, a massa trabalhadora e homens de negócios de passagem, para sobreviver.

Ironicamente, portanto, a mesma guilhotina que pariu os restaurantes, volta da tumba com sua lâmina coerente e afiada para nos despir do frívolo e do inútil.

Zzzzzzing! E vai sobrar o quê?

Pra começar, buscaremos oásis. Ninguém vai querer frequentar lugares que não tenham protocolos de higiene e limpeza tão ou mais eficazes do que os de nossas casas. Buscaremos sinais de fato, e sem blá blá blá. Queremos confiar nas marcas para voltar. Pé-sujos (até a vacina) estarão com os dias contados. Não se trata de nicho ou de bolso; quem manda é a vida.

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Pessoas continuarão indo a restaurantes para garantir seus pequenos luxos, fugas e alegrias, mas principalmente para rever os amigos. É hora de abandonar o excesso de falatório, garantir bom serviço e comida e deixar que o reencontro com a liberdade seja o grande encantamento.

Voltaremos para um Brasil, na média, mais pobre e amedrontado. É claro que negócios voltados para classes mais altas continuarão a existir, mas como achar a justa medida do que é certo falar ou vender, em tempos de tanta desesperança? Seria mesmo um bom momento para vender morangos com folhas de ouro, caviar, champanhe ou trufas importadas? Acho que não.

Todas as provações da pandemia nos fizeram valorizar o que nos é vital: família, saúde, teto, amizades, segurança, emprego. Limpemos a carne.

Luxo, ostentação, rituais e causas demais? Sebo, cartilagens, fibras, nervos….

As únicas causas que farão sentido depois da pandemia serão empatia e solidariedade.

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Qualquer excesso será indigesto.

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