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Por Cristiana Beltrão, restauratrice e pesquisadora de gastronomia e alimentação
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Juntando o filme com a vontade de comer

Fomes que brotam de filmes e os Oscars do meu estômago

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Atualizado em 23 abr 2021, 12h11 - Publicado em 23 abr 2021, 07h40

Acho que assisto ao Oscar só para resmungar as mesmas coisas, há anos: reclamo de quem ganhou, do horário da transmissão e do fato da minha insônia nunca marcar encontro com a premiação. Basta o assunto me interessar que me vem uma sonolência esmagadora, espremedora de pálpebras.

Grande parte da felicidade, hoje em dia, vem do sorriso da minha irmã, Maria, a escolhida para apresentar o evento na TV brasileira pelos últimos 15 anos. São semanas estudando detalhes sobre atores, roteiros e bastidores, que ajudam a entender para onde aponta a estatueta. Do lado de cá, só preparo a poltrona e o apetite.

Há filmes que me emprestam certas fomes (e sedes) e, inversamente, comidas que me lembram filmes. Ao contrário do resto da humanidade, nunca achei que as tramas rimassem com pipoca.

Quando acompanho o desfile no tapete vermelho, por exemplo, com todas aquelas senhoras e senhores mui elegantes, me lembro da origem do smoking, contada pelo amigo Reinaldo Paes Barreto. O traje foi criado por um alfaiate londrino para o Príncipe de Gales, em 1860, e pretendia ser mais adequado ao hábito de se fumar um charuto depois da refeição. Nascia a lapela de cetim, que fazia mais fácil a tarefa de soprar ou espanar as cinzas. Num nano-segundo, faço a associação Oscar-smoking-charuto-whisky e tomo logo um gole para abrir a sessão.

Por falar em álcool, torço por DRUK, um dos finalistas. Sou fã do dinamarquês Mads Mikkelsen desde que o vi em GREEN BUTCHERS (De Grønne Slagtere -2003) no papel de um açougueiro que esquartejava e servia os próprios clientes com uma bela marinada. Ao fim do filme, claro, o primeiro ímpeto é abraçar o vegetarianismo. Do mesmo modo, depois de vê-lo em Druk – uma ode ao escapismo através do álcool – só me desceu um copo de suco de fruta-do-conde, cheio de culpa.

Ainda no capítulo açougue de gente, como não lembrar do longa francês DELICATESSEN (1991), passado num prédio que tinha de tudo, de violinista a palhaço, num futuro fantasioso pós-guerra? O filme me impactou pela estética, ritmo e atuações impecáveis, especialmente de Dominique Pinon, um dos meus esquisitinhos favoritos.

Meus filmes e fomes andam de mãos dadas desde a infância.

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Lembro do imenso pastel de vento devorado num botequim pertinho do antigo Cinema Petrópolis, troféu auto-ofertado pela travessura de assistir clandestinamente ao filme ORCA – A BALEIA ASSASSINA antes da idade mínima exigida. O calor perfumado daquela dentada emprestou a todas as transgressões subsequentes um desejo de pastel.

Não há spaghetti que não lembre os papéis de Sophia Loren, graças à sua frase inesquecível: “tudo que você vê eu devo ao spaghetti”; ou sanduíche de peru que não me jogue na cena do orgasmo na Katz Deli, de HARRY & SALLY: “I’ll have what she is having”; e ainda, não consigo comer cannolo sem pensar em “leave the gun, take the cannoli, frase d’O PODEROSO CHEFÃO, vencedor do Oscar de melhor filme, 1973.

Os melhores filmes sobre comida, na minha opinião, não são recentes. Nos anos 90, finda a fase de idealização do mercado financeiro e da sequência interminável de filmes sobre Wall Street, o mundo cansou de ser yuppie e resolveu ser chef, romanceando a sua vida e o próprio negócio dos restaurantes. Explodiram reality shows, filmes e documentários sobre o assunto, só que de um jeito fantasioso e glamouroso demais. E a comida ficou maior que a trama.

O boom do interesse nos bastidores e personagens da cozinha começou com o alemão “SIMPLESMENTE MARTHA” (‘Bella Martha’ – 2001). Adorei o filme porque havia um pano de fundo que marcava as diferenças entre a cultura alemã, ordenada e metódica, e a italiana, expansiva e irreverente. Mas, em 2007, foi relançado em versão hollywoodiana blockbuster, com o título SEM RESERVAS, que tinha direito a Catherine Zeta-Jones com cabelo, unhas e maquiagem impecáveis em meio à confusão da cozinha e seu par perfeito com cabelos mais ainda, a desfilar em torno das panelas. Achei uma bobagem. De lá para cá, a receita da grande maioria dos filmes sobre chefs me parece igual: a caricatura, os dramas, os desajustes, o perfeccionismo.

O interesse por comida tomou uma proporção tão grande no cinema que, até quando não é o tema central, periga estragar um negócio na vida real. Foi o caso do restaurante Le Grand Colbert, em Paris, que era perfeitamente razoável até aparecer numa cena romântica do filme ALGUÉM TEM QUE CEDER (Something’s gotta give – 2003). Daí para meterem um cartaz gigante na fachada do restaurante com a foto de Diane Keaton e Jack Nicholson foi um pulo, e o lugar virou o grande centro de convenções da turistada barulhenta. Na categoria “comédia romântica” é dos meus filmes preferidos, mas aquele cartaz dublê de Medusa petrifica os clientes, antes da entrada.

Não posso levar a sério, por exemplo, quem goste de ramen e não tenha visto a comédia japonesa TAMPOPO (1985), um dos filmes mais queridos dos cinéfilos gulosos (e muito anterior à modinha) que conta a história de um caminhoneiro que esbarra numa casa de massas e decide ensinar a dona de um negócio moribundo, a cozinhar.

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Quando como queijo gorgonzola, por exemplo, me lembro da ótima co-produção ítalo-brasileira ESTÔMAGO (2007) e o caminho de Raimundo Nonato, um nordestino que, como tantos, vai para a cidade grande procurando vida melhor. Também não há como comer chantilly sem lembrar de Gérard Depardieu em VATEL (2000), e o fim trágico do cozinheiro que inventou o par perfeito para os morangos.

Pra não dizer que não falei de séries, passei todas as “seasons” de DOWNTON ABBEY com desejo de carne de veado. Tudo culpa do uniforme dos empregados da mansão, idênticos aos do restaurante Kronenhalle, na Suíça, onde comi o melhor da vida, com pêras cozidas, castanhas e repolho ao vinho tinto, em plena estação de caça.

E os filmes cruzam a cabeça até quando minha barriga ronca. Me lembro de Vivian Leigh empunhando o rabanete coberto de terra em O VENTO LEVOU, e afirmo: “com Deus por testemunha, jamais passarei fome novamente!”.

Por fim, o Oscar do meu estômago, aquele que faz brotar os mais lindos desejos vai para A FESTA DE BABETTE (Babettes Gæstebud, 1987). Muito mais que o caviar, as trufas, as salivantes “codornas no sarcófago” ou os borgonhas presentes no longa, a história nos lembra que dividir uma refeição maravilhosa é parte fundamental do prazer.

O Oscar, aliás, sempre foi o amuse-bouche do cinema, um evento feito para abrir o apetite pelas estreias, que têm outro gosto na tela imensa. Eu, que nunca fui fã de pipoca, ando sonhando em dividir um pacote bem cheio de assombros, angústias, romances ou sorrisos naquela sala escura que nos ilumina a vida.

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