Tempos de Glória
Ofuscado por prostitutas e mendigos, o bairro da Glória mostra as suas preciosidades, como a Rua do Russel por Pedro Paulo Bastos A Praça Luiz de Camões, na Glória, é um dos maiores símbolos da antiga nobreza carioca. O entorno da estação Glória do metrô intimida o pedestre que não conhece bem a região. Modestos […]
Ofuscado por prostitutas e mendigos, o bairro da Glória mostra as suas preciosidades, como a Rua do Russel
O entorno da estação Glória do metrô intimida o pedestre que não conhece bem a região. Modestos camelôs compartilham o espaço originalmente aristocrático da Rua da Glória com pequenas lojas comerciais e mais um bando de pivetes que se espalham pelo Largo que leva o nome do bairro. No último domingo, 31, já estava certo de que teria de me desvencilhar deles para percorrer a Rua do Russel da forma mais tranquila possível. Eu ziguezagueava pelas calçadas cobertas de paredões neste primeiro trecho da rua, que conecta o largo à Avenida Beira-Mar. Homens e mulheres, nitidamente embriagados e distantes dos seus mundos, gargalhavam ao pular o gradil de acesso ao Outeiro. Eis o panorama que assola o bairro, há tempos em um processo cada vez mais contínuo de decadência.
Uma manobra à direita e estava livre daquele corredor polonês. É ali onde a Rua do Russel luze imponente, com seus altos prédios históricos e uma praça, a Luiz de Camões, loteada de palmeiras, áreas livres e muitas esculturas. Esse trecho da Glória sempre despertou-me o interesse por um passeio a pé, embora sempre insistisse em apreciá-lo através das janelas dos ônibus. Definitivamente, como pedestre, a perspectiva é outra. E muito mais encantadora.
Antes mesmo de ler sobre alguns destes prédios da Glória, consegui captar naquele momento a sua essência a la francesa. A Praça Paris, que precede a Luiz de Camões, faz jus ao seu nome, pelo desenho perfeito de suas alamedas, peculiar à capital da França. Já na Rua do Russel é a arquitetura quem entra em cena, mostrando o que o Rio tem de melhor – ou o que pelo menos teve. Esqueça os edifícios bonitinhos residenciais da Praça do Lido, em Copacabana, além de outras referências do tipo mais modestas pela cidade. Na Glória, a arquitetura é genuinamente monumental. Tirou-me o fôlego, comprovando a ideia de que o pedestre que esteve por apenas uma vez ali conhece (ou pelo menos consegue conhecer) muito mais desse espaço urbano do que um motorista que diariamente trafega por ele.
Todos os edifícios, sem exceção, têm algo a contar. Não passam despercebidos. O que mais chama a atenção é o Edifício Lage, construído especialmente para o dono, Henrique Lage, em 1925. O detalhamento da fachada é impressionante. Inspiração italiana, estilo eclético. No número 496, o belíssimo Edifício Ipú é um símbolo do art déco, com varandas sinuosas e janelas em forma de escotilha. A lástima, aqui, fica a cargo do estado de conservação do prédio, bastante a desejar. A proximidade com o Hotel Gloria Palace (antigo Hotel Glória), repleto de tapumes devido à sua reforma, evidencia ainda mais o aspecto “cortiço” em que se encontra o Edifício Ipú.
A falta de espaço de lazer ou de garagem nesses prédios antigos da Glória é compensada pela presença da Praça Luiz de Camões, indispensável à Rua do Russel. De grande porte, ela é uma mescla de parque com cultura. Bustos de bronze de personagens importantes da história brasileira, estrangeira e religiosa estão por lá. Entre eles, o de Getúlio Vargas, bem grande, ao lado do então desconhecido para mim Robert Stephenson Smyth Baden-Powell, criador do escotismo. O melhor de lá é o espetáculo de águas que circunda a estátua de São Sebastião, preso sobre o que parece ser um pedaço de tronco e o corpo flechado. A praça é grã-fina, símbolo dos bairros chiques do Rio antigo.
Balaustrada na Rua do Russel |
A partir da esquina com a Ladeira da Nossa Senhora da Glória, a Rua do Russel fica mais sinuosa e em desnível com a Avenida Beira-Mar, que a margeia. Essa separação entre as duas vias é demarcada por uma balaustrada centenária, toda baseada em pedra. As luminárias são originais e preservam sua verdadeira idade, ornamentadas por diversos monumentos. Entre eles, o que comemora os cem anos da abertura comercial dos portos brasileiros.
Edifício Milton |
O trecho sinuoso da Rua do Russel acaba no encontro com outra praça conhecida como Esplanada Adolfo Bloch. Mais edifícios idosos compõem o jogo urbano desta parte do bairro, como os charmosos Itacolomy e Itatiaia, o meio afrancesado Milton (n. 710) e o monumental Columbia, já na esquina com a Praia do Flamengo. O Columbia também tem no seu térreo o Empório Santa Fé, loja de vinhos e restaurante, mais sofisticado. Como havia dito anteriormente, a Rua do Russel é tão original que lá se pode encontrar um belo exemplo de art nouveau, estilo raro pela cidade: o Antigo Villino Silveira, uma casa cheia de detalhes excêntricos, levantada em 1915.
Em qualquer outro lugar do mundo, a Glória seria ponto turístico irrecusável. A Rua do Russel reúne tudo o que os tempos dourados cariocas tiveram de melhor. Caminhar por lá é respirar, ainda que numa certa fantasia, os ares de um charmoso Estado da Guanabara, ares expelidos pelo mobiliário urbano intocável do lugar. Em meio a isso, ainda há um teleférico que te leva, de graça, ao Outeiro da Glória, lá em cima. Senti-me transportado a um outro Rio, quase pré-histórico, ao confrontar-me com aquela igreja. A vista nem se fala. Pior que tem carioca que nem sabe que a Glória é assim. Estão perdendo um baita e belo passeio…
Fontes:
Guia da arquitetura Art Déco no Rio de Janeiro / Centro de Arquitetura e Urbanismo do Rio de Janeiro; organizador: Jorge Czajkowski. 3. ed. – Rio de Janeiro: Casa da Palavra: Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, 2000.
Guia da arquitetura eclética no Rio de Janeiro/ [organizador Jorge Czajkowski]. – Rio de Janeiro: Centro de Arquitetura e Urbanismo, 2000.
Para ver mais fotos da Rua do Russel e da Praça Luiz de Camões, visite o grupo do As Ruas do Rio no Facebook. Aproveite para dar o seu “curtir” e ficar por dentro das atualizações do blog. E, principalmente, a divulgá-lo!