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Por Andressa Cabral, especialista em Design Thinking, chef e professora de gastronomia
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Um gole para o santo

Religião e Política não se discutem? Uma visão bem humorada sobre a cultura gastronômica e como as memórias religiosas a entrecortam

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Atualizado em 11 ago 2020, 13h48 - Publicado em 29 jul 2020, 11h11

Religião e política não se discute até que a Gastronomia se sente à mesa.

Que cada povo tem seu conjunto de hábitos e crenças, a gente sabe. Mas que coisa peculiar é o sistema cultural brasileiro quando se fala em comida, né?

Diz-se que brigadeiro foi inventado durante uma campanha presidencial dos anos 40 em homenagem a um dos candidatos. Diga-se de passagem, falando dos políticos brasileiros, chamar panfleto de propaganda de santinho é, no mínimo, curioso, né?

Agora, quando o assunto é comida e religiosidade, o brasileiro se supera.

Pensa comigo: em que país você desembarca num aeroporto e descobre uma comida de divindade vendida como street food?

Pois é assim que você é recepcionado após passar pelo corredor de bambuzais, em Salvador.

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E não é só lá que a gente pode comer as bolas de fogo (significado da palavra acarajé, oriunda do idioma ioruba): Aqui no Rio a gente pode se deliciar em muitas barracas de feira, onde vemos, por sinal, todo o conjunto que se tornou patrimônio imaterial da cultura- e aqui, a gente precisa dar uma pausa pra falar sobre o que pode e o que não pode.

 

O ofício das baianas foi reconhecido na Bahia como patrimônio e compreende um conjunto de normas para seguir tombado, que inclui o uso das vestimentas, como a bata, o pano da costa e o ojá de cabeça. A receita também não comporta modificações: o bolinho leva apenas feijão fradinho e cebola e deve ser frito em azeite de dendê. Assim como não se discute mudar a cor da parede de um prédio tombado, não cabe recurso à apelação de “pseudo liberdade” pra modificar estas práticas, por favor- e é lindo ver um ofício que nasce com as ganhadeiras no Brasil colônia (a partir da comida da Deusa Oyá, a Senhora dos ventos e das tempestades) e se perpetua até os dias de hoje por suas descendentes, ultrapassando as fronteiras da religião e tomando as ruas e o coração do brasileiro. Don’t touch my acarajé, tá okay?

Ainda falando de comidas e deuses, temos a festa de Cosme e Damião.

(Tarcio Vasconcelos/Google)

Imagina a cena: anos 80, Rio de Janeiro. Chega setembro e, com ele, o único dia do ano que a Dona Angela me deixava matar aula. O nobre motivo? Pegar doces de Cosme e Damião. A farra era correr livremente pelas ruas, aos bandos, que se faziam e desfaziam aleatoriamente, numa expedição de caça aos melhores saquinhos.

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Olha, sinceramente, só o Brasil é capaz de roteirizar um evento como esse.

Ao longo dos anos eu fui descobrindo aspectos interessantíssimos da festa: tinha quem desse doces em atendimento à graça alcançada, mães que pediam a cura de seus filhos; Tinha muito sincretismo religioso também: certa vez eu fui a um “aniversário” onde a gente entrava em fila, circulava por uma mesa toda preparada pra festa, cada um se servia e tinha bolo. Mas não tinha música nem o aniversariante. “Se era aniversário, a criança tava morta”essa foi a minha conclusão, o que nada me impediu de levar umas boas cocadas e marias moles comigo.

Ah, tem mais um detalhe: Cosme e Damião são dois santos católicos, que em vida eram adultos e médicos.

Sentido total, mesmo, não faz até hoje. Mas nem tudo precisa fazer sentido, basta fazer a gente sentir. E eu guardo ótimas memórias entre subidas e descidas pelas ladeiras de Santa Teresa desse festival de glicose, serotonina e autonomia.

Agora, pra finalizar: quer ver a gente dar muita bandeira de brasileiro? Chega na porta de um botequim carioca e observa a cena. Sugiro pedir uma gelada “pra limpar a serpentina”, porque ninguém é de ferro.

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(Meelow/Reprodução)

O botequim é aquele lugar idílico, onde você se sente amigo do dono, o garçom te chama pelo nome e você só lembra de perguntar o nome do parça lá pela quinta cerveja de conversa (sim, número de garrafas, pra mim, é unidade de tempo de permanência no bar). Até aqui, já falamos de carnaval e futebol (porque no Rio, escola de samba e time é que nem religião e a gente discute sim), já falamos de casamento (quem nunca riu do ex com um desconhecido num balcão de bar?), fomos críticos gastronômicos (a bebida entra e a Luciana Fróes sai, nem que seja pra falar de tremoços) e falamos de novos projetos (mesmo que eu seja agrônomo e você, físico nuclear. Se bobear, mais três cervejas e uma batida de gengibre- porque a gente mistura mesmo- e já teremos uma escola de dança dervixe, que já se mostra um oceano azul de oportunidades de negócios a essa altura).

Visualizou daí a cena ou limpou demais a serpentina? Não tem problema, história é o que não falta, não importa o ângulo por onde você olhe.

Tem outra coisa também muito característica do boteco: Ninguém senta. Mas pudera, né. Não dá pra empreender amizades e fazer tanta história parado num lugar só.

Quem cria raiz é árvore, malandro. Botequim é lugar de circular. De batucar. De jogar uma sueca. De afogar as mágoas. De pedir um pastel, de comer um paio de feijão. E de beber em pé, falando alto, sorrindo, deixando o tempo passar.

Se faz bem pra alma, eu digo que é religioso.

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Brinda aqui e não esquece do gole pro santo. Pra garantir, né?

Com bastante bom humor e uma dose de traçado,

Andressa Cabral.

Perfil de sabor desse texto: notas adocicadas, com gotas de jurubeba e toque cítrico

Som do dia: De Frente Pro Crime- João Bosco

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