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Maria Ribeiro: “Jardim de Alah é esperança na humanidade dos cariocas”

Numa cidade em que as ruas estão deixando de existir como possibilidade de encontro, colunista e atriz lembra que utopia é a função do urbanismo

Por Maria do Amaral Ribeiro Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
15 set 2023, 07h00

Morei em casas metade da minha vida. Primeiro no Jardim Botânico, depois no alto do Humaitá e, por último, em um condomínio na Barra. Nas duas últimas, não tive qualquer experiência com vizinhos, e não havia vida sem carro. Quando, finalmente, quis casar e ter filhos, me mudei para um apartamento. A ideia era, bebê a tiracolo, voltar a viver a rua como havia sido no meu primeiro endereço.

Dizem que somos feitos de pai, mãe e geografia. É claro que vários outros ingredientes entram nesse balaio, mas o CEP da largada certamente é um deles. Sei esses oito números até hoje, e devo meu ofício a eles.

A rua onde nasci ficava perto de uma praça. Que eu frequentava praticamente todos os dias. Joana — que era quem me levava — ia cantando no percurso, e até hoje me emociono com as calçadas da Rua Peri. Minha infância teve céu. Acontece que a praça onde eu brincava era também um dos lugares onde a TV Globo mais gravava cenas de novelas. Estamos falando dos anos 80.

Virei atriz. Meus pais, que acreditavam que minhas redações de menina me transformariam em uma mulher das leis, resistiram muito a aceitar o ofício que eu havia escolhido. Ou que a rua talvez tenha escolhido pra mim. Mas vocação é como amor. Melhor não resistir.

Na minha história, aquela praça foi origem e destino, passado e futuro, uma viga pra sempre. Mas, hoje, em 2023, penso o quanto isso ainda é possível. Porque algumas ruas da nossa “cidade maravilhosa mais ou menos maravilhosa” estão, literalmente, deixando de existir como possibilidade de encontro.

A tecnologia é a principal responsável, o leitor poderá dizer. Mas também podemos falar da pandemia. A partir do momento em que transferimos para as telas de nossos smartphones o ato de conversar, o de comprar, o ato de pedir comida, mas principalmente a discussão política, estamos assinando o atestado de óbito das ruas. É o último prego no caixão das praças. Ai de ti, Rubem Braga.

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“A ocupação do espaço público também serve à ciência e à cultura, à economia e à democracia”

Desde a turma das cavernas, foi exatamente a necessidade da convivência de seres humanos em um mesmo espaço físico o que deu origem às regras e às leis. E não só isso. A ocupação do espaço público também serve à ciência e à cultura, à economia e à democracia — ou a falta dela. É a rua, por exemplo, quem, muitas vezes, nos alerta — ou deveria nos alertar — sobre a imensa desigualdade social que encontramos não só no Rio de Janeiro e no Brasil, mas em várias partes do mundo. Ou não é isso que ouvimos de gente que vai embora? Que saiu daqui pra andar na rua? Que desistiu do nosso passaporte?

Por serem espaços tão democráticos, ruas e praças são necessariamente diversas. É na rua que convivemos com o diferente. É na rua que o executivo que caminha para o metrô reduz o passo para conversar sobre futebol com o vendedor de cachorro-quente. É na praça que vão e vêm, lado a lado, o balanço de uma criança cuja mãe está no sinal — e nenhuma mãe deveria estar no sinal — e o balanço da criança que, como eu, era superprotegida por uma funcionária cujo trabalho era exclusivamente zelar por mim.

É por tudo isso que, com grande alegria, fiquei sabendo dos detalhes do projeto polemizado da renovação do Jardim de Alah. A área, de enorme potencial, e encravada no coração da Zona Sul, sempre me pareceu um muro invisível. Uma espécie de Berlim Oriental e Ocidental. Algo insolúvel. Por isso, fui conhecer o projeto de Miguel Pinto Guimarães e Sergio Conde Caldas cheia de preconceitos, vestida com o meu melhor progressismo verde e anticapitalista de uma atriz de esquerda. Foi 7 a 1 pra eles.

Ok, um dos arquitetos do rolé é meu grande amigo, mas, posso falar? Meu irmão escreveu livros sobre Lúcio Costa, sou team Paulo Mendes da Rocha, e cheguei a uma idade difícil de passar pano pra minha turma. Sou branca e privilegiada, e cresci com amigos que ainda não entenderam nada sobre luta de classes, racismo e homofobia. Perco parceiros de infância, mas não fico quieta nem a pau.

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Acontece que o que vi ali foi um manifesto de amor à cidade, à sustentabilidade, à natureza e, sobretudo, à democracia. A consciência de que algo precisa ser feito para explodir de vez as fronteiras da Cruzada São Sebastião, e a integração definitiva de seus moradores a um território que também lhes pertence, tudo isso me fez crer que a horizontalidade que existe nas nossas praias, pode, finalmente, ter companhia.

O projeto, que transforma quatro praças destruídas pelas obras do metrô e abandonadas pela população há quase quarenta anos em um parque urbano integrado, pode ser a ressurreição do sonho modernista de dom Helder Câmara. Hashtag dom Helder e padre Júlio Lancellotti, como é bom ser católica sob a trajetória desses dois.

Parece utopia. E é. Mas essa não é a função do urbanismo? O projeto do Jardim de Alah é antes de tudo a esperança na humanidade dos cariocas. O Rio do encontro, do convívio, da ocupação do espaço público por todo e qualquer morador desta cidade. Independentemente do bolso, do CEP e do saneamento básico. Mas essa é outra coluna…

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