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Maria Ribeiro: “Paulo José coração de ouro”

“Percebi que o que eu gostava de ver no cinema não era o espetáculo, e sim, a humanidade dos atores. Paulo José era o maior de todos”, escreve a atriz

Por Maria Ribeiro
Atualizado em 20 ago 2021, 10h20 - Publicado em 20 ago 2021, 06h00
Maria Ribeiro, de coque, olha para baixo
Maria Ribeiro e a "Insustentável leveza do ser": "Mil novecentos e oitenta e quatro — ano da publicação do clássico checo — é o primeiro da minha lista de calendários rebeldes". (Bob Wolfenson/Instagram)
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O que que uns olhos têm que outros não têm? O que que uma boca tem que outras não têm?

Eu só sei que me apaixonei pelo Paulo José. Na hora. Vi Todas as Mulheres do Mundo, de onde tirei o texto acima (trocando “Maria Alice” por Paulo José), pela primeira vez em agosto de 1994. O Brasil tinha acabado de ganhar a Copa do Mundo, o real vinha cheio de promessas substituindo os cruzeiros, e a democracia era uma palavra que dava gosto de dizer.

Aqui dentro não era muito diferente. Aos 18 anos, eu também tinha todos os futuros do mundo pela frente. Estava começando a faculdade. Conhecendo Tom Zé e Mutantes. Vendo uma eleição ser disputada por Lula e Fernando Henrique. Gostando de verdade. Fazendo teatro de grupo. E, principalmente, descobrindo os filmes sobre os quais devem ser construídas as nossas pistas de skate.

Na época, o Cineclube Estação Botafogo passava, se não me engano às segundas-feiras e na sala 1, clássicos nacionais dos anos 60. Muito Glauber Rocha, muito Nelson Pereira dos Santos, muito Ruy Guerra, muito Leon Hirszman.

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Assim eu conheci o Corisco do Othon Bastos, a Zulmira da Fernanda Montenegro, a Maria Alice da Leila Diniz, o Paulo do Paulo José. Assim eu me dei conta de que o que eu gostava de ver no cinema não era o espetáculo, ou a trama, ou a fotografia, e, sim, a humanidade dos atores.

E, assim, finalmente, eu me dei conta de que Paulo José não era um ator como os outros — por mais incríveis que os outros fossem. Paulo José era simplesmente o maior de todos.

“Maria Alice, escrevi um poema pra você. Eu não sei se é bom, mas é teu. De modo que eu vou dizer.” Saí do cinema sem entender absolutamente nada do que tinha acabado de assistir, mas certa de que era a melhor coisa que eu já tinha visto na vida.

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Que experiência era aquela que em duas horas havia transformado tudo? Era óbvio que o que eu vira naquela tela não era um documentário, nem tampouco era ficção.

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Primeiro, que o personagem e o ator tinham o mesmo nome. Depois, que o texto não parecia texto. Parecia vida, parecia Deus, parecia simples. Eu não sabia como aquilo havia sido feito, mas tive certeza de que era aquilo que eu queria fazer. Por que não era um filme. Eram pessoas. Não, não eram pessoas. Era uma pessoa. Era o Paulo José.

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“Percebi que o que eu gostava de ver no cinema não era o espetáculo, ou a trama, ou a fotografia, e, sim, a humanidade dos atores. E assim me dei conta de que Paulo José era o maior de todos”

“Houve um tempo em que eu pensei que tinha talento e capacidade pra fazer qualquer coisa. Era uma euforia besta. Hoje eu sinto que o tempo vai passar e me engolir sem que eu faça nada. Infelizmente isso dura pouco.”

Essa fala é de outro filme do Domingos Oliveira, Edu, Coração de Ouro. Domingos dizia que Edu, inspirado em seu grande amigo Eduardo Prado, era o sujeito mais bacana que ele conhecia, e que, portanto, só poderia ser feito pelo Paulo José.

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Quando fiz O Inimigo do Povo, do Ibsen, Paulo conversou com os atores depois da peça. “Pensem no peito de vocês como um grande refletor iluminando os colegas em cena”, disse. Nunca esqueci. Peito-refletor.

Paulo era professor. E também construía luminárias — como seu Shazan, de Shazan, Xerife & Cia, fazia locuções, como a narração antológica do curta Ilha das Flores, de Jorge Furtado, tocava piano, era pai de quatro, além de um dos maiores diretores da história da nossa tevê, tendo no currículo Agosto, de Rubem Fonseca, e O Tempo e o Vento, de Erico Verissimo.

Reza a lenda — e o Daniel Filho — que, na tentativa de convencê-lo de que era, sim, o diretor ideal para a série baseada na obra de Verissimo, Paulo teria se vestido de gaúcho — que era — da cabeça aos pés.

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Paulo era ator até quando era diretor.

Dadá Coelho, sua grande amiga, conta que Paulo gostava de recitar um poema da portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen, que dizia assim:

“Quando eu morrer voltarei para buscar os instantes que não vivi junto do mar”.

Paulo morreu no último dia 11, aos 84 anos, no Rio de Janeiro, uma semana depois do incêndio da Cinemateca em São Paulo.

Quando eu morrer, voltarei pra buscar os fotogramas do Paulo José.

Que lá eu encontrarei o Brasil.

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