Sem coitadismo, Mary del Priore traça a história da velhice no Brasil
De invisíveis e reclusos a consumidores e tentando se adequar às novas tecnologias, os idosos mudaram de perspectiva nos últimos 500 anos

O tema da velhice passou a interessar a escritora e historiadora Mary Del Priore, 73, quando ela começou a sentir uma dor no joelho e passou a acompanhar com atenção a finitude da própria mãe, quase centenária. Assim ela iniciou uma intensa pesquisa para escrever Uma História da Velhice no Brasil (Editora Vestígio).
A autora escreveu um texto inspirado para a coluna de Lu Lacerda no início do mês.
O livro traça uma panorama sobre como a sociedade lida com o envelhecimento do Brasil Colônia até a atualidade. O que antes era tratado com descaso hoje é – ou deveria ser – sinônimo de cuidado e acolhimento. Afinal, o número de idosos cresce a cada ano. Atualmente, os 60+ respondem por cerca de 10% da população.
Em sua pesquisa, Mary percebeu que os velhos foram absolutamente invisíveis aos olhos de todo o país até o início do século XIX. “Ou era um desígnio de Deus, ou do diabo, que também dizia que os pecadores viviam mais graças a ele”, pontua a historiadora.
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O livro também mostra o modo com o qual indígenas e escravizados africanos lidavam com os idosos. “A velhice era símbolo de poder e de proximidade com os deuses”, explica Mary. “Apenas aqueles muito velhos poderiam se comunicar com os ancestrais. Eram homens com um poder muito grande em suas comunidades. Nas senzalas, eles organizavam as uniões, dirimiam as tensões e eram chamados pelos senhores de engenho quando havia um conflito a ser resolvido”, acrescenta.
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Priore se deparou com passagens curiosas da história do Brasil: os europeus ficavam fascinados com a longevidade dos indígenas brasileiros, cometendo até alguns exageros.
Na invasão francesa no Maranhão, em 1612, o capuchinho Claude d’Abbeville contou ter batizado o pai do maior morubixaba do Maranhão, que teria “160 e tantos anos e já enxergava pouco por conta da velhice”.
“A dieta calcada em farinhas, de milho ou mandioca, com peixe seco ou carne seca, pequena caça, frutas e verduras nativas, acabou por trazer longevidade aos nossos ancestrais”, explica a autora.
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Só no século XX os velhos “saíram das sombras” e começaram a sair de casa para fazer compras, visitar parentes, encher os hospitais e morrer um pouco mais tarde.
Mary também analisa como a literatura tratou os 60+: José de Alencar tinha a velhice como sinônimo privilégio. Machado de Assis criou velhos doentes e solitários. Já Joaquim Nabuco ilustrou o efeito provocado pelo progresso nos mais velhos.
“Em 1923, com a implantação da aposentadoria, muitos caíram no alcoolismo e até se suicidaram porque não sabiam o que fazer com o tempo livre”, explica Mary. “O chefe de família, de repente, teve de lidar com um vazio e com uma ameaça ao seu papel como provedor”, acrescenta.
Por fim, Mary Del Priore afirma que as cada vez mais ágeis mudanças na sociedade de hoje representam um desafio para os idosos, que são obrigados a lidar com solidão, falta de dinheiro, saúde e a própria família. “Por outro lado, o velho de hoje busca se adequar à tecnologia. Ele ganhou importância ao se transformar em consumidor”, conclui.