Martinho da Vila: “O racismo é uma doença, mas é curável”

Aos 87 anos e em plena atividade, o sambista e escritor fala sobre o show no Circo Voador e revela por que desistiu de se candidatar a uma vaga na ABL

Por Renata Magalhães
23 Maio 2025, 09h00
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Martinho da Vila: sambista e escritor fala sobre o show no Circo Voador (./Divulgação)
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Em 1972, o cantor e compositor Martinho da Vila, 87 anos, viajou a trabalho para Angola. Ao pisar no país africano pela primeira vez, acessou sua ancestralidade e criou um vínculo profundo com o local, para onde voltou várias vezes. A mais recente delas foi no dia 30 de abril, quando apresentou o show O Canto Livre de Angola na capital Luanda, em comemoração aos cinquenta anos da independência política de Portugal.

Responsável por mais de cinquenta discos de estúdio, vinte livros e dono de quatro prêmios do Grammy Latino, ele fará uma única apresentação do espetáculo no sábado (31), no Circo Voador, alternando músicas na língua kimbundu com seus grandes sucessos. Em conversa com VEJA RIO, o fluminense natural de Duas Barras, que logo conquistou Vila Isabel, resgata memórias — inclusive de quando escapou de um grave acidente de avião —, e fala sobre religiosidade e racismo, ressaltando a importância da música negra para a nossa cultura.

Você tem o título de embaixador cultural honorário de Angola. Acredita que teve participação nessa conquista da liberdade? Não consigo precisar quantas vezes já estive no país. Uma vez, fiz um show no dia 7 de setembro, em um teatro. Falei que o Brasil estava comemorando sua independência e que eu esperava, quando retornar, encontrá-los livres também. Houve um silêncio, com palmas acanhadas. Descobri depois que a polícia portuguesa estava presente.

O que sentiu no seu primeiro contato, em 1972? Queria conhecer o lugar de onde acredito que vieram meus antepassados. Nossa cultura é toda influenciada por eles, desde as artes até a culinária. Foi quando entendi sobre a minha ancestralidade e por isso escrevi: “Se ao pisar o solo teu coração disparar / Se entrares em transe sem ser da religião (…) Se o povo te impressionar demais / É porque são de lá os teus ancestrais”.

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Viveu boas histórias? Muitas. Logo na primeira vez, os angolanos queriam me levar para uma festa, mas os portugueses desaconselharam. Fui para o hotel, disse que ia dormir, os seguranças foram embora e eu parti com um amigo para a favela onde todos estavam. Sempre tive boas experiências. 

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Como você enxerga a evolução da luta antirracista no Brasil? O racismo é uma doença, mas é curável. Da mesma forma que alguém aprende a discriminar ainda criança, pode aprender depois de adulto a ser antirracista. Avançamos muito. Em um passado recente, não víamos imagens de negros na publicidade ou em protagonismos. Hoje somos maioria, e o Brasil está cada vez mais colorido com os encontros interraciais.

Sente que a música negra brasileira é valorizada como um pilar da nossa cultura? O samba é um símbolo do Brasil mais forte do que o hino nacional. Em qualquer lugar do mundo, todos reconhecem. A maioria das grandes estrelas da música brasileira canta samba, até os rappers.

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Durante a pandemia, você escreveu sua biografia. Como foi revisitar tantas lembranças? É uma boa forma de preservar a nossa memória e a dos nossos antepassados. Poucos sabem quem foram seus bisavós, quais as suas histórias… Agora, acabei de escrever um de contos, que acho uma boa forma de aproximar as pessoas do hábito da leitura. Estou à procura de uma editora.

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Tem vontade de entrar para a Academia Brasileira de Letras, como aconteceu com Gilberto Gil? Todo escritor sonha com a honraria de entrar para a ABL. Já me inscrevi uma vez por incentivo do movimento negro, para ter um representante entre os acadêmicos. Não fui eleito e não pretendo tentar mais. A diretoria já sabe quem vai ocupar a cadeira, fazem o convite para essa pessoa e é essa inscrição que vale. Nem adianta concorrer.

Do atropelamento de um ônibus até escapar da queda de um avião, qual a história mais surpreendente que você já viveu? O ônibus me pegou em Vila Isabel, quebrei as duas pernas, mas fiquei bom logo. A do avião é a mais inacreditável. Por insistência da cantora Rosinha de Valença, troquei meu voo que ia para a França por outro para Madrid. Foi justamente o que caiu no aeroporto de Orly, em Paris, que matou mais de 120 pessoas. Os meus anjos da guarda não dormem.

Você é religioso? Sou católico e tenho meus santos assentados no candomblé. Quando acordo, costumo dizer “Viva Nossa Senhora, saravá Iemanjá!”. Durante as minhas rezas, peço saúde, paz e alegria para mim e todos os que estão em minha volta. Não dá para resolver todos os problemas do mundo, então tentamos o que é possível. E geralmente acontece.

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O Carnaval da Sapucaí vem passando por muitas mudanças. Considera um caminho para a renovação ou nesse caso manter a tradição seria melhor? Toda manifestação folclórica que não se renova tende a morrer. As escolas foram acompanhando os tempos. O importante é manter a base, as cores, os símbolos, não perder a essência ó e algumas já perderam completamente.

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Está animado para os desfiles de 2026? Muito, adorei o enredo da Vila sobre Heitor dos Prazeres, um dos maiores pintores do Brasil, que nunca frequentou uma escola de Belas Artes. Só não vou fazer samba- enredo porque já parei com isso, aposentei faz tempo.

O que ainda te inspira a subir no palco? É o melhor lugar do mundo para mim. Faço o máximo para ser transparente, para me conhecerem de verdade. Não há distinção entre o Martinho que está em casa e aquele lá em cima. … onde exerço meu ofício e procuro alegrar as pessoas. Faço de tudo para que saiam dos meus shows mais felizes do que chegaram.

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