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Layana Thomaz: ‘Meu bebê morreu 20 horas antes do parto’

Estilista e multiartista carioca viveu uma gravidez de alto risco aos 42 anos e sentiu na pele a terrível experiência da violência obstétrica

Por Cleo Guimarães
Atualizado em 27 Maio 2020, 17h10 - Publicado em 27 Maio 2020, 15h33

Os hospitais são velhos conhecidos de Layana Thomaz. Nascida com uma malformação no coração que a levou a fazer três cirurgias e um transplante aos 26 anos, a estilista e multiartista carioca viveu momentos de euforia e depressão ao decidir levar à frente uma gravidez de alto risco, aos 42 anos. Marina nasceria em maio, o parto foi antecipado para abril, mas seu bebê morreu 20 horas antes da hora marcada, às vésperas do Dia das Mães e em plena pandemia do coronavírus. Vítima de violência obstétrica, ela faz terapia para se recuperar de tudo o que passou e dá seu depoimento exclusivo a VEJA RIO:

“Aos 42 anos de idade, solteira, com um histórico de saúde delicado, três cirurgias cardíacas (a última delas um transplante de coração decorrente de uma malformação congênita), uma endocardite bacteriana, um violento período de depressão e três abortos espontâneos, eu achava que gerar um filho seria impossível. O fortíssimo desejo de ser mãe era latente em mim há muitos anos, mas a vida não ajudava e acho que eu também não.

Até que, no ano passado, quando eu estava vivendo o momento da minha maior crise profissional, conheci aquele que viria a ser o pai da minha filha. Eu e ele terminamos de uma forma idiota, com palavras e quereres desencontrados, e dez dias depois me vi comprando todas as marcas de testes de gravidez que encontrei na farmácia.

Quatro testes deram positivo e naquele mesmo dia contei a notícia para o pai da Marina (este é o nome que escolhi para a minha filha), pelo whatsapp. Marcamos uma conversa para o dia seguinte. Foi muito difícil. Ele tem uma filha de quatro anos, e disse que ela tinha sido a coisa mais maravilhosa que tinha acontecido na vida dele, que não precisávamos estar juntos para ter um filho, que existem muitos formatos de família e que estaríamos juntos da melhor maneira possível pelo bebê que viria. Eu sabia que ele é um bom pai e topei, morrendo de medo de tudo. Cada pessoa que sabia da notícia era um pulo e abraços, muitos abraços, e beijos. Era quase inacreditável, eu estava gerando meu sonho e antes de saber o sexo eu só chamava minha filha de “o meu milagre”. Éramos dois milagres em um único ser energético.

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A linda promessa feita pelo pai da Marina naquela primeira conversa não durou muito e rapidamente ele entrou no modo “só aparece quando dá na telha”. Chegamos ao ponto de termos uma baita briga, eu começar a sangrar, ser hospitalizada, diagnosticada com descolamento de placenta, e ele sair para viajar e só me dar um “oi” pelo whatsapp, quando voltou, uns doze dias depois. Mas minha vida seguia. Eu gestando minha Marina e parindo coleções, campanhas, eventos, me mudando de casa, cercada de amigos incríveis, minha mãe e meu padrasto realizando meu sonho, não como nos romances, mas de um outro jeito tão amoroso, gentil e atencioso quanto.

Marina sempre foi maior do que um bebê da idade gestacional dela, mas sempre mais magra, e desde o início eu sabia que não poderia passar da 37 semana de gestação por causa do meu coração transplantado. Ela nasceria prematura, com menos peso do que o ideal, mas era perfeita, não apresentava nada de errado. Eu precisaria parar quieta no início de março, logo quando entrei no terceiro trimestre da gravidez. Comecei uma dieta de engorda para a Marina e a ordem era cama, calma, tranquilidade e seis refeições proteicas por dia. Os exames e consultas passaram a ser semanais e havia uma meta de alcance de peso por semana, para que a Marina nascesse com pelo menos dois quilos. Foi ai que a tensão começou. Ela não ganhava o peso da meta, e as consultas semanais foram virando um tormento pra mim, sempre sozinha. A cesária foi marcada para o dia 7 de maio, às vésperas do Dia das Mães. Naquele momento eu tinha mais três semanas para que a Marina ganhasse o máximo de peso possível. Na primeira consulta após a marcação da cesária, Marina ganhou apenas sessenta gramas e, na segunda, Marina tinha parado de se desenvolver. Desesperei.

Minha pressão estava 18×9. O ideal seria fazermos uma cesária no dia seguinte, mas antes eu precisava baixar a pressão. Adiantamos a cesariana uma semana: ela foi marcada para o dia 30 de abril. Marina nasceria numa quinta-feira de manhã. Na terça, eu jantei e deitei cedo, estava me sentindo bastante cansada. Capotei rápido na cama e lá pelas duas da manhã acordei sentindo fortes dores na barriga, e com a cama cheia de sangue. Não lembro como cheguei na emergência da maternidade e tudo que aconteceu lá é um enorme quebra-cabeça com peças perdidas. O hospital é em Brasília, onde mora a minha mãe, e lembro de diversos médicos em volta de mim, exame de toque, soro, Buscopan na veia e muitas contrações. Eu fazendo mil perguntas e as pessoas pareciam zumbis que ignoravam a minha fala nervosa. Ninguém falava comigo. Não esperaram meu obstetra chegar, não tinham meu histórico médico, não quiseram saber de nada, fui vítima de uma violência obstétrica absurda. Eu ouvi: ‘Exame um, exame dois’, e o mundo parou. Não havia mais batimento cardíaco. Minha filha estava morta. Alguém disse que começariam a induzir um parto vaginal e eles saíram fazendo o que achavam que tinham de fazer: tirar um bebê morto de dentro de uma mulher. Lembro dos meus dedos sujos de sangue se agarrando forte num pedaço de tecido branco. Lembro de depois de muita dor sentir minha filha sair de mim imóvel e sem som. Eu gostaria de ter morrido ali naquele momento.

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Vi minha bebê de longe, estiquei os braços, que foram ignorados como todos os meus outros pedidos. Daquele lugar fui levada para a enfermaria, onde outras mulheres gritavam de dor, se preparando para serem levadas para a sala de parto e receberem seus filhos com vida em seus braços. Saí da maternidade andando com um vestido ensanguentado, um absorvente enorme entre as pernas. O pai da minha filha estava do lado de fora da porta de vidro por onde passei, completamente desnorteada, dopada, em estado de choque. Fomos para a casa dele eu dormi por algumas horas.

Passei apenas quatro dias na casa do pai da minha filha, quando o mínimo seriam quinze dias por causa do resguardo e também do covid. Ele me pediu que eu fosse embora porque precisava do espaço dele. Eu ainda estava com a hemorragia do pós-parto, ainda estava lidando com meus seios duros e doloridos, tirando o leite que jorrava debaixo do chuveiro até começar a tomar um remédio para secar o leite. Como minha mãe não podia entrar em ambiente hospitalar por ser grupo do risco do covid e o pai da Marina se negou a ir comigo, eu fui sozinha, ainda sangrando, ler e entender os laudos dos exames da necrópsia, resolver o atestado de óbito, pagar por tudo também sozinha, resolver coisas de cartório e o pior, reconhecer o corpo da minha bebê para liberar para a cremação. Ela estava gelada, sem cor. Um pouco inchada, mas linda.

Alguns dias depois fui buscar, também sozinha, as cinzas dela. Fiquei impressionada: eles entregam as cinzas dentro de um saco plástico. Decidi plantá-la junto a uma muda já grandinha de laranjeira, no quintal da minha mãe. Em uma cerimônia simples e para muito poucos, vou transmutar o corpo da minha bebezinha em outra forma de natureza.”

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