Mônica Martelli: ‘Eu e Paulo Gustavo fazíamos tudo juntos, menos transar’
De luto pela morte do melhor amigo, atriz fala sobre a relação entre os dois e conta como virou referência em assuntos ligados a amor e sexo
Durante anos, a dupla formada por Mônica Martelli e Paulo Gustavo rendeu altas risadas no cinema e excelentes bilheterias. Amigos desde 2005, quando ele a abordou em um bar do Leblon para mostrar o projeto de uma peça inspirada em sua mãe, o embrião do fenômeno que se tornaria Minha Mãe é uma Peça (“Eu falei: Faz! Vai mudar a sua vida!”, lembra Mônica), os dois levaram quase 12 milhões de brasileiros às salas de exibição nos três filmes em que contracenaram, entre eles Minha Vida em Marte (2018). A conexão entre Paulo e Mônica não era somente profissional. “A gente fazia tudo juntos, só não transávamos”, diz a atriz de 52 anos, que vive um momento pessoal delicado com a morte do melhor amigo, no início de maio, por complicações da Covid-19.
Se não fosse pela “tristeza absurda”, como ela própria define, Mônica estaria passando por fase exuberante, apaixonada, no auge da carreira e com planos a perder de vista — ela vai estrear ainda neste ano um programa de não ficção no GNT, com foco nos relacionamentos amorosos. Em entrevista a VEJA RIO, de São Paulo, onde mora desde 2019, a fluminense de Macaé reflete sobre o humor dos novos tempos, lembra do estupro que tirou sua virgindade ainda adolescente e fala sobre o legado deixado por Paulo Gustavo: “Um legado de amor, empatia, generosidade e luta contra o preconceito.”
Como era o Paulo Gustavo que você conheceu como poucos? Era uma pessoa que não deixava nada para depois. Ele era o hoje, o agora. Tinha pressa em experimentar a vida, além de ter transformado a vida daqueles que amou e também a de muitos brasileiros que o amavam.
Como ele conseguiu falar a tanta gente? Ele foi um militante muito poderoso. Através da sua obra, do casamento com o Thales e dos seus filhos, o Paulo ajudou pessoas preconceituosas a rever seus conceitos e mostrou que família é amor, não importa a configuração. Esse é o maior ativismo que eu já vi.
Qual o legado de sua obra? Paulo Gustavo vai influenciar várias gerações de forma profunda. Como disse, pelo humor, ele fez a gente refletir e aceitar as diferenças. Dona Hermínia, seu grande personagem, ajudou muitos jovens a assumirem sua sexualidade. Milhares de pessoas lotaram os cinemas para ver uma mãe que aceitava e amava o filho gay. Isso é de uma imensa importância.
Durante a pandemia, ele gravou um vídeo em que dizia que “Rir é um ato de resistência”. Concorda? Com certeza, ainda mais nesse mar de horrores em que estamos mergulhados, onde a dor, a desesperança e a tragédia tomam conta de nosso dia a dia. Resistência é não deixar que levem a nossa alegria embora. Ele era a cara do nosso melhor Brasil, da empatia e da tolerância. Agora, temos de honrar a vida dele. O luto é com luta.
Vocês dividiram muitos sucessos recentes, mas o início da sua carreira demorou a deslanchar. O que atrapalhou? Eu demorei a entender qual era o meu talento, o que agora está claro: escrever o que eu vivo, o que eu penso, e interpretar o texto do meu jeito. Perdi tempo demais indo por caminhos óbvios como teste para novela, book, papo com produtor de elenco, essas coisas. Me faltou segurança para acreditar nas minhas capacidades antes. Mas isso veio. Autoconhecimento é tudo.
“Através da sua obra, do casamento com o Thales e dos seus filhos, o Paulo mostrou que família é amor. Não importa a configuração. Esse é o maior ativismo que já vi”
Seu começo na TV foi em programas de humor que muitas vezes exibiam a mulher de forma pejorativa. Se arrepende de ter interpretado certos personagens? Não, porque eram outros tempos, e eu acho que o humor reflete o momento em que vivemos. Já participei de quadros que jamais poderiam ir ao ar atualmente, superpreconceituosos e machistas. Fiz o papel da gostosona várias vezes por causa da minha altura (1,80 metro). Mas esse tipo de piada não cabe mais, ainda bem. Fora que não tem a menor graça.
Como classifica o tipo de humor que faz? Não sou de contar piada, é um humor de situação. A graça está no jeito como eu falo e interpreto os personagens. É tudo muito real e aí as pessoas acabam se identificando.
Seu próximo programa terá como foco os relacionamentos amorosos. Como virou expert no assunto? Acho que tem a ver com o fato de eu sempre ter vivido o amor intensamente e quebrado a cara muitas vezes. Não tenho vergonha de contar essas histórias nas minhas peças, nos filmes. Até porque acontece com todo mundo. Elas seguem o mesmo roteiro. A gente só tem de estar preparada para ele.
E qual seria esse roteiro? Quando você se apaixona, só enxerga o que quer. Fica vivendo naquela fase em que a outra pessoa não tem nenhum defeito. Depois dessa cegueira maravilhosa, o ser humano real aparece, cheio de problemas — e tudo bem. A desilusão faz parte. É inevitável. Isso que é difícil de aceitar.
É verdade que você foi vítima de violência sexual? Sim. Mas demorei muitos anos para perceber que tinha sido estuprada. Eu tinha 15 anos, estava com um ficante num luau, ele me levou para um trecho vazio da praia e me forçou a fazer sexo. Eu nunca tinha transado, foi horrível, mas na hora não encarei como estupro. Na minha cabeça, naquela época, estupro era outra coisa.
Que tipo de coisa? Estupro para mim era um cara com uma arma na mão, cara de mau, bandidaço. No meu caso, achava que eu tinha dado o azar de estar com um menino com muita vontade de transar. Essa consciência do “meu corpo, minhas regras” é mais recente. Antes disso, passávamos por situações que achávamos que fazia parte. Hoje não toleramos mais.
Foi depois desse episódio que resolveu fazer terapia? Não. Isso mexeu com a minha autoestima, com a minha segurança, mas só entrei na terapia anos depois. Faço há 25 anos. É uma lanterna que ilumina os buracos e ajuda a não cair neles de novo. Não soluciona a vida de ninguém, mas mostra onde os problemas estão.
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