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De onde vem nosso sushi

Pouco conhecido, feio e inóspito, o pavilhão de pescados da Ceasa, localizado no Irajá, fornece cerca de 80% dos peixes consumidos na cidade

Por Bruna Talarico
Atualizado em 2 jun 2017, 13h16 - Publicado em 25 dez 2013, 19h30

Quatro e meia da tarde. Uma estridente sirene se soma à cacofonia que toma o Pavilhão 12 da Ceasa, em Irajá. Uma multidão de homens calçados com galochas de borracha se espreme nos corredores. À frente de cada um dos 56 boxes acumulam-se caixas de plástico com atuns e dourados gigantes, moluscos e lagostas. Em uma corrida contra o tempo e a concorrência, vendedores e compradores negociam aos gritos os valores e as quantidades de pescado, como em um leilão. Conforme as vendas vão sendo fechadas, as caixas são marcadas com pedaços de papel com o nome dos novos donos. “Quem chega primeiro consegue os melhores preços e produtos. É uma disputa diária”, afirma Alex Jorge, proprietário e chef do Wasabi, restaurante japonês da Barra da Tijuca, que vai pessoalmente ao galpão escolher o pescado que servirá a seus clientes.

O pavilhão dos peixes da Ceasa é um dos mercados mais exuberantes e desconhecidos da cidade. Para cada 1?000 quilos vendidos no Rio, pelo menos 800 saem dali. Diariamente, o entreposto recebe 300 toneladas de mercadoria proveniente de todo o país. A cada jornada de vendas, os chamados pregões, a mercadoria mais nobre e mais fresca é arrematada em apenas quinze minutos. Assim que o furor passa, entende-se por que todos usam galochas. O piso é tomado por um líquido que escorre das caixas, uma mistura de gelo derretido e vísceras de onde emana um cheiro aterrador. “É meio nojento. Vou sempre com um par de tênis velhos que depois eu jogo fora”, conta Mário de Andrade Netto (o Mário Maluco), dono do Palaphita Kitch, bar com filiais na Lagoa e no Jockey. Em uma de suas visitas, ele se deslumbrou com um atum gigante e o arrematou. Com uma faca emprestada, cortou um pedaço e preparou lá mesmo uma porção de sashimi. “Nunca comi nada igual”, recorda.

Selmy Yassuda
Selmy Yassuda ()

Com 6?000 metros quadrados de área, o mercado recebe cerca de 3?000 compradores diariamente. Apesar dos números grandiosos e da qualidade incontestável de seus produtos, o entreposto de Irajá está longe de ser um programa de fim de semana para turistas e chefs. Assim que chega, o visitante depara com um panorama composto das favelas de Para Pedro, Acari e Amarelinho. O pavilhão, uma imensa estrutura de concreto, apresenta infiltrações e sérios problemas de conservação. “Há anos o governo promete instalações novas, mas estamos sempre de pires na mão para manter tudo funcionando”, reclama Francesco Tomaso, presidente da Associação dos Pregoeiros de Pescados e Afins do Estado do Rio de Janeiro.

Em um de seus romances mais famosos, chamado O Ventre de Paris, o escritor francês Émile Zola dedicou mais de 300 páginas a um minucioso retrato do antigo Mercado de Les Halles, no centro da capital francesa. No livro, de 1873, ele descreve em detalhes a ala dos peixes, em um pitoresco perfil dos vendedores, inspetores, carregadores e compradores que circulam em meio a caixas de mexilhões, salmões, trutas e linguados. Da mesma forma, o pavilhão dos peixes de Irajá junta tipos bem peculiares em seus boxes. O veterano Sebastião Jorge, 63, começou a trabalhar no ramo ainda nos anos 1970 no antigo mercado da Praça XV. Conhecido como Bacalhau, está no pavilhão desde a abertura, há mais de vinte anos, e agora prepara o filho, Eduardo Silva, 26, para assumir seu lugar. “A vida aqui é sacrificante e são poucos os jovens que querem seguir com o negócio. No meu caso, dei sorte”, diz ele. Alexandra Amendola, 39 anos, trabalha há seis no pavilhão e é a única mulher a comandar um boxe ali. Formada em engenharia elétrica, ela não se intimida de viver em um ambiente predominantemente masculino. “De maneira geral eu me sinto muito segura dentro do pavilhão. O problema é com o que acontece do lado de fora.”

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Selmy Yassuda
Selmy Yassuda ()

De fato, os arredores do complexo são de meter medo, principalmente depois do anoitecer. Os pátios ermos e mal iluminados estão sempre tomados por traficantes, prostitutas e viciados em crack, muitos deles crianças e adolescentes. A polícia e funcionários do serviço de assistência social da prefeitura realizam operações esporádicas na área, mas os resultados costumam ser inócuos. Por isso, antes mesmo do cair da noite a maioria dos clientes já deixou o local. “Assim que as equipes vão embora, tudo volta ao que era antes”, diz Marcello Braga Maia, titular da Delegacia da Criança e Adolescente Vítima (DCAV).

Selmy Yassuda
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Maltratado, fedido, sujo e perigoso, o pavilhão da Ceasa de Irajá praticamente só se sustenta devido à oferta de pescados de primeira a um custo altamente competitivo no atacado. Os preços chegam a ser 40% inferiores aos cobrados no varejo tradicional. “Uma vez comprei uma caixa de 20 quilos de cavaquinha pelo mesmo preço de 1 quilo no supermercado”, conta Mário Maluco. Mas o ambiente hostil repele todos aqueles que não nasceram dotados de espírito de aventura. Tal realidade não é necessariamente uma maldição destinada a pairar para sempre sobre o entreposto. No exterior, não faltam exemplos de instalações desse tipo que atraem levas de visitantes. “Nossa ambição é ter no Rio um mercado como os de Madri e Valência, com lojas para o consumidor comum, restaurantes e até uma fábrica de gelo”, sonha Felipe Peixoto, secretário estadual de Desenvolvimento Regional. Os planos já estão prontos e preveem a construção de um novo pavilhão de 37?000 metros quadrados de área em um terreno a 500 metros do edifício atual. Até o projeto sair do papel, o pavilhão de Irajá continuará a vender os melhores peixes, moluscos e crustáceos em um dos lugares mais feios da cidade.

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