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Uma relação de amor e ódio

O sucesso de restaurantes, lojas e casas noturnas paulistanos no Rio mostra que a velha rixa com a metrópole do lado de lá da Via Dutra arrefeceu. Mas isso não significa que as rusgas terminaram

Por Felipe Carneiro
Atualizado em 5 jun 2017, 14h52 - Publicado em 2 set 2011, 15h50

O escritor Nelson Rodrigues, com sua verve característica, dizia que a pior forma de solidão era a companhia de um paulista. O poeta Vinicius de Moraes julgava ser a cidade de Adoniran Barbosa o túmulo do samba. Perguntado sobre o lugar mais esquisito onde já tinha feito amor, o sarcástico Bussunda respondeu de bate-pronto: São Paulo. A forma debochada como tratamos a antiga terra da garoa é ancestral e folclórica. Verdade. Mas começaram a surgir recentemente alguns sinais de que a velha rixa entre as duas maiores metrópoles do Brasil é mais retórica do que prática. Casas noturnas, bares e restaurantes paulistanos estão invadindo o Rio com suas filiais ? e as filas na porta mostram que são bem-vindas. A sala de embarque do Aeroporto Santos Dumont, que sempre teve seu momento de baixa nas noites de sexta, está cada vez mais cheia de gente que deixa para trás o lazer à beira-mar do fim de semana em busca da gastronomia variada e dos agitos culturais do lado de lá. Estaríamos perdendo a nossa essência ácida e galhofeira e nos convertendo ao que alguns consideram sisudez e falta de ginga bandeirante? Nem tanto.

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Nós amamos São Paulo, mas à nossa maneira. Uma pesquisa exclusiva feita pelo Instituto Brasileiro de Pesquisa Social (IBPS) em parceria com VEJA RIO revela que 47% dos entrevistados têm alguma simpatia pela capital paulista e outros 10% gostam muito dela. Basicamente, o que mais lhes chama atenção são a fartura do comércio e dos serviços, a vibrante vida noturna e as atrações culturais. São aspectos invejados, mas não o suficiente para convencer essa gente bronzeada a abandonar de vez a praia, o calor e os botequins. Apesar de só pouco mais da metade dos entrevistados ter ido à terra natal do escritor Mário de Andrade, sete em cada dez são taxativos em dizer que não morariam nela de jeito nenhum. O que mais os assusta são o trânsito, a violência urbana (uma surpresa, dada a nossa experiência com o assunto), as enchentes e a poluição. Fruto do velho preconceito, os paulistanos também são vistos como excessivamente sérios e antipáticos (veja nos quadros abaixo). ?As origens são muito diversas. O paulistano foi forjado pelo dinheiro da indústria e tem o trabalho como o centro de sua vida, enquanto o carioca traz latentes um apreço pela beleza natural e o culto ao corpo?, analisa o antropólogo Roberto da Matta. ?Com isso, os valores cultivados pelos habitantes de ambas as metrópoles sempre terão suas diferenças.?

Fernando Lemos
Fernando Lemos ()

É inegável que a estagnação política e econômica do Rio nas últimas décadas acirrou a rivalidade. Nós, que já tivemos os melhores restaurantes, hotéis e lojas do país, ficamos, pouco a pouco, com serviços obsoletos e ultrapassados. Enquanto perdía­mos a identidade de capital da República, em 1960, nossos rivais dispararam na frente com a força da indústria automobilística, do mercado financeiro, da agricultura, do setor de serviços, das feiras e exposições, da mentalidade empreendedora de sua elite. Enquanto São Paulo se transformava, com novos prédios e avenidas, o Rio até recentemente parecia o mesmo dos tempos de Carlos Lacerda, o primeiro governador do então estado da Guanabara. Só que com menos dinheiro, mais problemas e o ar mofado da decadência. Esse fenômeno, por obra e graça de uma conjunção de fatores, começa a ser revertido. A descoberta de petróleo na camada de pré-sal e a escolha para sediar a final da Copa do Mundo de 2014 e a Olimpíada de 2016, ao lado de bons resultados no combate à criminalidade, alavancaram a economia e a autoestima do carioca. Calcula-se que, entre investimentos públicos e privados, 150 bilhões de reais serão aplicados no estado nos próximos cinco anos. ?Criou-se uma espiral positiva por aqui. Há uma autoconfiança que resulta em maior disposição para investir, gastar, experimentar e também para rever preconceitos e bairrismos?, afirma o economista Sérgio Besserman.

Fernando Lemos
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Diga-se de passagem, os paulistas entenderam rapidamente os novos tempos. Diversos negócios nascidos às margens do Tietê possuem hoje filiais muito bem-sucedidas por aqui. A pizzaria Bráz tem quatro restaurantes em São Paulo e um em Campinas, mas foi no Rio que construiu o maior de todos, na Barra da Tijuca, com 300 lugares (o campeão de lá, em Higienópolis, tem 200). O outro ponto à beira-mar, no Jardim Botânico, é o de maior faturamento por pessoa de toda a rede, com um gasto em média 15% superior ao da matriz e, pasmem, consumindo mais vinhos. Como sucesso atrai sucesso, vieram na esteira, entre outros, a hamburgueria Fifties, a Livraria Cultura, a churrascaria Fogo de Chão, o restaurante Carlota, o bar Astor e uma penca de estabelecimentos que estão à procura de um endereço para desembarcar na cidade. Um dos pioneiros nesse movimento foi a grife Fasano, dona de hotel de mesmo nome e do restaurante Gero. O grupo se prepara para abrir uma segunda unidade da casa especializada em cozinha italiana, agora na Barra. ?Nossa proposta é trazer para cá o mesmo padrão de lá. A única diferença, para melhor, é o cenário incrível?, diz Rogério Fasano, cujo hotel possui a piscina mais bonita de toda a orla, com vista para o Arpoador e o Morro Dois Irmãos. Isso, o suntuoso Fasano dos Jardins não tem. E jamais terá (he he he).

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Maria do Carmo/Folhapress
Maria do Carmo/Folhapress ()

Piadinhas à parte, o intercâmbio tem sido muito proveitoso aos capitalistas de bermuda. Aos poucos, os empresários cariocas vêm deixando de lado a velha mentalidade de se aferrar ao mercado local e arriscam investidas no território alheio. A grife Farm e a rede de academias BodyTech são ótimos casos desse tipo de iniciativa. Com uma vantagem: a visibilidade global do Rio transformou o estilo de vida local em objeto de desejo fora daqui e entre os paulistanos descolados. ?Quando abrimos nossa primeira loja paulista, tínhamos dúvida sobre a aceitação de uma de nossas linhas de produtos, feita de náilon colorido. Hoje ela é simplesmente nossa campeã de vendas?, conta Tande Camara, dono da grife Uncle K. A recíproca nem sempre é verdadeira. Para vencer no Rio, algumas adaptações são necessárias. Assim, a rede de restaurantes Ráscal mudou o cardápio. ?Em São Paulo, come-se mais massa. Aqui, a preferência é por peixes e uma maior variedade de saladas?, explica Roberto Bielawski, dono do estabelecimento. ?O maior problema que tivemos, no entanto, foi com as funcionárias. Elas insistiam em subir a barra da saia, reclamando do calor. Até hoje tenho de chamar a atenção para que fiquem com as coxas cobertas. Já estamos pensando em redesenhar o uniforme?, rende-se.

Fonte: pesquisa VEJA RIO/IBPS
Fonte: pesquisa VEJA RIO/IBPS ()

A temperatura é, de fato, mais alta. E as moças talvez sejam mais desinibidas. Mas existe uma coleção inteira de mitos e lendas contadas pelos paulistas que não corresponde à realidade. A primeira é que somos folgados. Não é verdade. De acordo com números do IBGE, os cariocas trabalham em média 39,9 horas por semana, contra 39,8 de nossos irmãos bandeirantes. Também não somos duros. O mesmo IBGE mostra que os trabalhadores do Rio ganham, em média, 45 reais mensais a mais que os conterrâneos de Hebe Camargo. Não resta dúvida, porém, de que o mercado de trabalho deles é maior e mais diversificado que o nosso. Daí o grande contingente que atravessa a Dutra em busca de oportunidades profissionais. O economista Andrew Hancock, 26 anos, fez esse caminho. Em 2009, trocou o Recreio dos Bandeirantes pela Vila Olímpia para virar trainee no Itaú, mudando logo em seguida para o banco de investimentos Credit Suisse. Gostou. ?O dinheiro está em São Paulo. A gente vê isso tanto no trabalho, na sede dos bancos da Avenida Faria Lima, quanto no dia a dia, com a imensa variedade de bares, restaurantes e boates cheios de gente em qualquer dia da semana?, aponta ele, que como outros célebres nativos (veja a galeria na página ao lado) não pretende retornar tão cedo.

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O início da disputa entre as duas maiores cidades do país remonta ao princípio do século passado, quando São Paulo começou a desenvolver a sua indústria. Mas, apesar do dinheiro, como capital federal o Rio não dava muita bola e dominava completamente o cenário político, cultural e econômico. O máximo que havia era uma certa picardia da imprensa com o sotaque acaipirado dos presidentes paulistas da República Velha, como Prudente de Morais e Rodrigues Alves. A Semana de Arte Moderna, em 1922, foi um marco importante na relação. Por ter sido feita exclusivamente com dinheiro dos industriais locais, em contraponto aos eventos culturais daqui, bancados pelo estado, a Pauliceia passou a desdenhar do glamour do Copacabana Palace e da Confeitaria Colombo. ?A partir da década de 50, quando São Paulo se tornou a cidade que mais crescia no mundo, começou a se disseminar a ideia de que ali se pagavam impostos para sustentar os funcionários públicos que viviam na praia, coisa que se manteve mesmo quando a capital se mudou para Brasília?, afirma o historiador Marco Antonio Villa. A reação dos cariocas, que mal tomavam conhecimento da existência dos rivais, foi em tom jocoso, fazendo troça das aspirações europeias do que viam como uma cidade provinciana.

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É dessa época a famosa reportagem do jornalista sergipano Joel Silveira ?Grã-finos em São Paulo?, na revista Diretrizes, sobre a elite que circulava sua elegância pelos bairros do Jardim Europa e de Cerqueira César. Escreveu ele: ?Não suportam o Rio de Janeiro. Têm um ar de absoluto desprezo para tudo que é carioca. Quando acontece aqui qualquer coisa elegante e fora do comum, eles ficam lá em polvorosa e providenciam logo uma função idêntica em Piratininga, com mais lantejoulas e mais esplendor?. E era categórico nos motivos que definiam nossa superioridade: ?O carioca pega a coisa no ar, faz um trocadilho irônico, e esquece. Mesmo porque a finesse daqui é a finesse de praia. De calção de banho é impossível a gente distinguir o milionário Carlos Guinle do bookmaker da avenida. Ambos possuem o mesmo físico e a mesma lábia?.

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Nos dias de hoje, por qualquer ângulo que se olhe, a pendenga entre a praia e a montanha, a garoa e o sol, o terno e a bermuda perdeu completamente o sentido. Rio e São Paulo são duas cidades bastante diferentes, mas complementares. ?A facilidade e o barateamento do transporte e da comunicação integraram essas metrópoles, principalmente por se tratar de duas economias de serviço?, comenta o economista Besserman. A convergência é tanta que existe até uma turma nova, chamada de ?paulistocas?. Eles vivem parte da semana em Ipanema, parte nos Jardins. ?Aquele preconceito idiota está acabando. É cada vez maior o número de pessoas que reconhecem as vantagens de ter os pés em ambas as capitais?, diz Luiz Calainho, empresário que vive de sexta a segunda aqui e de terça a quinta por lá. Afinal, trata-se de um casamento perfeito, em que todos podem ganhar. Embora fique um maior número de horas no trabalho, o carioca precisa desenvolver o mesmo grau de comprometimento dos vizinhos. Em troca, tem muito a ensinar com sua simpatia, leveza, talento, sagacidade, bom humor ? e infinita modéstia, é claro.

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