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Faltando uma peça

Montagem estudantil agrada a crítica e público, recebe convites para estrear no circuitão, mas esbarra na lei e pode nunca mais ser encenada

Por Lula Branco Martins
Atualizado em 2 jun 2017, 13h13 - Publicado em 12 fev 2014, 18h19

Há duas semanas, no fim da sessão de 26 de janeiro, o último dia da temporada de The Book of Mormon no pequeno palco da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Uni-Rio), na Urca, o elenco agradeceu os aplausos ? enxugando as lágrimas ? e em seguida um dos atores anunciou: aquela montagem, nascida nos bancos escolares, com poucos recursos, e exibida por dois meses dentro de uma faculdade pública, tinha tudo para seguir carreira. Sucesso inesperado e relâmpago, incensado pela crítica especializada, faria mais algumas apresentações, agora num teatro oito vezes maior, no caso o Net Rio, em Copacabana. O convite havia sido feito três semanas antes pelo empresário Frederico Reder, sócio da empresa de entretenimento Brainstorming, gestora das duas salas do antigo Teatro Tereza Rachel, que hoje leva o supracitado nome de uma operadora de canais de TV por assinatura. Ele se entusiasmou com o que viu, procurou o diretor do espetáculo, o professor Rubens Lima Júnior, e ofereceu-lhe as terças e quartas de fevereiro. No entanto, lá no fundo, ambos sabiam que nada seria tão simples assim, e, nos dias seguintes, vários advogados, de um lado e de outro, trabalhariam para tentar transformar o desejo em realidade. Foi em vão.

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Está escrito na Lei Brasileira dos Direitos Autorais, de 1998, que montagens de caráter acadêmico, que façam parte do currículo normal das instituições de ensino, não precisam de autorização para ser encenadas. O entendimento é que elas servem como pesquisa e treino para os alunos. The Book of Mormon, um debochado e iconoclasta musical americano (sobre uma dupla de pregadores em missão pela África), é recente ? estreou na Broadway em 2011 ?, assinado por Trey Parker, Matt Stone (do desenho South Park) e Robert Lopez (da peça Avenida Q). Como faz normalmente com outros textos, nacionais ou estrangeiros, a Uni-Rio não comunicou a nenhum dos três autores que estaria produzindo uma adaptação, com versão livre em português, e que, além disso, mostra cenas diferentes daquelas da rubrica original. Tampouco cogitou pagar royalties a eles ou algo que os valha. “Não é necessário”, afirma o reitor Luiz Pedro San Gil Jutuca, ressaltando que, como sempre acontece, todas as apresentações na faculdade são gratuitas, abertas ao público em geral. Foi este pormenor que, a princípio, sustentou o otimismo de Reder, do Theatro Net Rio: ele concordaria que lá também não fossem cobrados ingressos.

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Só que a lei tem mais um dado: essas peças podem, sim, ser montadas sem obstáculos legais ? mas desde que estejam em cartaz dentro do ambiente universitário. Como fazer então? Foi a hora de entrar em cena um terceiro ator nesse complicado roteiro: a Fundação Cesgranrio, patrocinadora da montagem, e que mantém, há três anos, um convênio com a universidade, fomentando projetos do professor Rubens Lima Júnior. O presidente da entidade, Carlos Alberto Serpa, fã de musicais e que atualmente opera como um dos mais reconhecidos mecenas das artes cênicas na cidade, reuniu seus advogados, e eles bolaram o que parecia ser uma solução: um contrato de comodato entre a Uni-Rio e o Net Rio. Assim, o teatro cederia temporariamente seu lugar físico. Seria como se a faculdade estivesse sendo transferida, por um pequeno período, para o palco do Terezão. A ideia pode até soar como truque jurídico, mas é levada em consideração por especialistas na área. “Estaria correta a opção pelo comodato, uma das formas mais utilizadas para a cessão de espaços, principalmente os teatrais”, opina a advogada Deborah Sztajnberg, autora do livro O Show Não Pode Parar: Direito do Entretenimento no Brasil.

Num primeiro momento, as duas partes envolvidas aceitaram a proposta de Serpa. E-mails foram trocados e documentos chegaram a ser redigidos. Enquanto essa fase burocrática ia tomando corpo, a Uni-Rio não marcava passo, fazendo a sua parte ? a artística. Assim, na terça (4), Rubens, seus alunos e um punhado de técnicos da faculdade adentravam a Sala Tereza Rachel para medir cada detalhe do seu palco. E o caminhão que levaria os cenários já estava a postos. Foi quando apareceu, no celular do professor, uma mensagem, vinda do Net Rio, que dizia que o contrato de comodato não era suficiente. “Eles queriam que já tivéssemos, em mãos, a liberação por parte dos autores da peça”, conta Lima Júnior.

Acontece que o texto, de tão novo, nem disponível está. O escritório que representa Parker, Stone e Lopez informa que só em outubro iniciará o processo de venda de direitos. A boa notícia é que Carlos Alberto Serpa já se credenciou e surge como o primeiro brasileiro da fila. Outra esperança para a legião de fãs da montagem carioca (incluindo-se globais como Dennis Carvalho, Maurício Sherman e Tiago Abravanel), que viram e querem rever The Book of Mormon, ou que tentaram um lugar na plateia mas não conseguiram entrar mesmo depois de quatro horas de fila, é que já rolaram outros convites à produção. Karen Acioly, do Teatro do Jockey, e Rodrigo Nogueira, do Ipanema, formalizaram a intenção de levá-la a seus palcos, mas podem esbarrar nos mesmos problemas legais. Nesse sentido, a proposta mais viável foi aventada pela professora Maria Lúcia Galvão, que cederia o Teatro Odylo Costa Filho, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) ? ou seja, um espaço acadêmico e, como a Uni-Rio, público, o que facilitaria as coisas.

Esse tipo de imbróglio que envolve The Book of Mormon não é inédito no Rio. Em 2005, uma montagem universitária de Roda Viva chegou a ser cogitada para cumprir temporada no Teatro Glória, mas seu autor, Chico Buarque, não permitiu. Na época, era Claudio Botelho, espécie de midas dos musicais, que administrava o palco, e acatou o pedido do compositor. “Não permitiria que nenhuma produção estreasse num teatro sob meu comando sem a devida autorização do autor”, diz Botelho. A polêmica parece mesmo não ter fim ? e é quase tão grande quanto o real Livro dos Mórmons, 780 páginas, letras miúdas.

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Fernando Lemos
Fernando Lemos ()

Ele viu lá e cá

Haveria comparação entre uma peça da Broadway e uma montagem estudantil carioca?

The Book of Mormon da Uni-Rio comprova que, mesmo com poucos recursos, mas com talento, trabalho sério e criatividade, podemos ser bem-sucedidos. Essa montagem não deve nada à original da Broadway, que vi em 2011, e a prova é o merecido sucesso que vinha tendo.”

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