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O Rio dos viajantes

A cidade que encanta moradores e turistas arrebatou em seus 448 anos de história alguns dos mais célebres cientistas, exploradores e artistas do mundo, autores de relatos preciosos sobre suas belezas

Por Letícia Pimenta
Atualizado em 5 jun 2017, 14h09 - Publicado em 27 fev 2013, 17h52

O Rio desfruta um privilégio raro no mundo. Antes mesmo de existir como núcleo urbano, já excitava o imaginário dos europeus, tais eram as maravilhas que se contavam sobre a região da Guanabara. Os primeiros relatos dos descobridores, no início do século XVI, eram tão ricos e surpreendentes que suscitaram todo tipo de lenda. Longe de arrefecer com o passar dos anos, tamanho fascínio não só se manteve como se intensificou, uma vez estabelecido o povoado por Estácio de Sá, em 1º de março de 1565. Encravada entre a montanha e o mar, a cidade arrebata moradores e turistas. Em seus 448 anos, que serão completados na próxima sexta, o Rio recebeu gente famosa que se encantou com o que viu por aqui. Não se trata de celebridades como a cantora Madonna, frequentadora contumaz do hotel Fasano, ou o ator Harrison Ford, que se perdeu na Floresta da Tijuca na semana passada. São relatos históricos deixados em cartas, livros, diários e entrevistas por personalidades que ajudaram a expandir o conhecimento humano, como o físico Albert Einstein, o pintor impressionista Edouard Manet, o escritor Herman Melville, autor de Moby Dick, o naturalista Charles Darwin e os cineastas Walt Disney e Orson Welles. “Além de curiosos, os documentos mostram pontos de vista muito diversos dos nossos. Também é uma prova de como o Rio foi e continua sendo importante”, diz o historiador Nireu Cavalcanti.

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Estima-se que, dos primórdios da colonização até a segunda metade do século passado, cerca de 300 viajantes tenham escrito sobre nossas paisagens, população, hábitos, costumes e descobertas científicas. Eram missionários, comerciantes, naturalistas, cientistas, educadores, aventureiros, imigrantes e artistas vindos da Europa e dos Estados Unidos. O exuberante porto do Rio, segundo especialistas em pinturas de época, é provavelmente o lugar mais retratado em toda a América Latina. Além da profusão de imagens, foi registrada uma infinidade de observações sobre a então principal cidade brasileira e porta de entrada do país. Tradutor dos cerca de oitenta relatos no período colonial, o historiador Jean Marcel de Carvalho França explica o protagonismo da capital nos escritos de viagem: “O Rio era o grande ator das narrativas pela localização estratégica. Passado o período da invasão holandesa, em que um grande número de viajantes visitou o Nordeste do país, a cidade consolidou-se definitivamente como foco principal desses registros”.

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Mesmo nos dias de hoje, em que as imagens circulam pelo mundo inteiro por meio de jornais, revistas, TV e internet, um passeio pela cidade deixa impressões profundas em quem vê pela primeira vez a rara combinação de montanhas, mar e floresta. Para os visitantes do século XIX, então, a opulência natural era, sem dúvida, o que mais chamava atenção. “O dia em que alguém entra pela primeira vez neste magnífico porto pode ser tido como marco de uma época em sua vida, porque ele é, fora de qualquer questão, o mais belo do mundo”, derreteu-se o americano Herman Melville em seu livro White-Jacket, publicado em 1850.

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No caso de alguns dos nomes históricos que estiveram por aqui, a experiência transbordou, em certa medida, para suas obras. Em 1848, o então aspirante a marinheiro Edouard Manet desembarcou no Rio durante uma longa escala do navio que o trazia a bordo, o Havre et Guadeloupe. Herdeiro de uma rica família de magistrados parisienses, o jovem de educação refinada passou dois meses na cidade. Ele relatou em cartas aos pais suas impressões sobre a paisagem, as mulheres, o Carnaval, a escravidão e os hábitos locais. O livro Edouard Manet: Viagem ao Rio, Cartas da Juventude (1848-1849) reproduz também alguns desenhos do período da viagem, prenunciando sua carreira artística. “A qualidade e a intensidade da luz nos trópicos deixaram uma marca indelével em sua obra e levaram à rejeição dos meios-tons. Ao mesmo tempo, a experiência de navegar pelo oceano fez com que a água em suas pinturas tivesse um movimento raramente visto”, contou a VEJA RIO a biógrafa do pintor, a americana Beth Archer Brombert. Da mesma forma, o naturalista Charles Darwin, que passou pela capital em 1832, não economizou adjetivos para descrever o que viu: “Sublime, pitoresca, cores intensas, florestas parecidas porém mais gloriosas que aquelas nas gravuras”, escreveu. Diz o historiador britânico James Moore, autor de várias biografias sobre o naturalista: “O Rio foi a primeira cidade de estilo europeu a ser visitada pela expedição do Beagle. Darwin ficou especialmente encantado com os invertebrados da enseada de Botafogo”.

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Ainda que a vegetação, o clima e o relevo ocupem lugar de destaque na imaginação e nos depoimentos dos viajantes, no século XX novos componentes começaram a ganhar peso nos relatos. Há exatos 100 anos, o ex-presidente americano Theo­dore Roosevelt, que esteve por aqui antes de participar de uma expedição pela Amazônia, se entusiasmou com o cosmopolitismo e a velocidade de transformação da metrópole. “O Rio de Janeiro passou de um pitoresco foco de miasmas que era para uma grande cidade, singularmente bela, saudável, limpa e moderna”, escreveu no livro Nas Selvas do Brasil. Em uma visita a Manguinhos, impressionou-se com o nível das pesquisas ali desenvolvidas por Oswaldo Cruz. Uma década depois, o físico alemão Albert Einstein se espantava com a mistura étnica nas ruas (“português, índio, negro, com todos os cruzamentos”), no que descreveu como uma “experiência fantástica”. Nos anos 40, os cineastas Walt Disney e Orson Welles, já consagrados por filmes como Branca de Neve e Cidadão Kane, respectivamente, perceberam peculiaridades que ajudariam a transformar em marca do país mundo afora: o samba, a descontração e o bom humor carioca.

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É natural que, em meio a tanto entusiasmo, se encontrem também críticas e até mesmo impressões em que as decantadas belezas decepcionaram. O mais notório exemplo é o do antropólogo francês Claude Lévi-Strauss, que esteve no Rio em 1935, a caminho de São Paulo. No livro Tristes Trópicos, ele revela sua decepção: “Sinto-me embaraçado para falar do Rio de Janeiro, que não me atrai. O Pão de Açúcar, o Corcovado, todos esses locais tão gabados assemelham-se a raízes de dentes perdidas nos quatro cantos de uma boca desdentada”. Darwin, que tanto elogiou a natureza, foi implacável com os homens que aqui viviam e que julgava preguiçosos. Seria impossível mesmo agradar a todos, o tempo todo, em quase cinco séculos de história.

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