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Pancadaria no recreio

Por Alessandra Medina, Caio Barreto Briso, Letícia Pimenta e Sofia Cerqueira
Atualizado em 5 jun 2017, 14h58 - Publicado em 8 jun 2011, 18h29

O ataque demorou menos de cinco minutos. O primeiro golpe, desferido por um grandalhão de 14 anos, veio na forma de uma rasteira. A vítima, um menino de 6, desabou no chão e bateu a nuca no piso de concreto. Meio tonto, levantou-se apenas para receber uma segunda banda. Novo tombo, outra batida de cabeça no chão, agora do lado esquerdo, pouco acima da orelha. Um grupo de amigos do garoto menor assistia estarrecido à cena, enquanto três outros adolescentes, amigos do agressor, bloqueavam o caminho para que eles não o socorressem nem buscassem ajuda. O pequeno se levantou, mas seu carrasco não desistiu ? colocou o pé na sua frente e puxou a perna. A queda, dessa vez, foi com o rosto no chão. Só então a coça parou. O adolescente saiu correndo com seus amigos, enquanto o pequeno foi largado para trás. O resultado de toda essa brutalidade acabou registrado na delegacia policial e em um laudo médico de uma clínica na Lagoa: dois inchaços sob o couro cabeludo (na nuca e pouco acima da orelha esquerda) e um galo com um corte na testa. Por causa dos ferimentos, a criança ficou 48 horas em observação, até os médicos descartarem o risco de um eventual coágulo no cérebro. “Foi uma covardia”, diz Mauricio Meneses dos Reis, pai do garoto ferido. “Não aceito a hipótese de acidente ou brincadeira.”

Chocante pela disparidade entre a idade do algoz e a da vítima, a cena descrita aconteceu em um dos pátios do São Bento, bastião da educação carioca, com mais de 153 anos de tradição. Campeão nacional do Enem em 2005, 2007 e 2008, o estabelecimento é conhecido pelo seu rigor com a disciplina e por ter abrigado em seu quadro de alunos algumas das mais destacadas personalidades nacionais, a exemplo do maestro Heitor Villa-Lobos e do compositor Noel Rosa. No episódio, porém, tal fama não pautou a conduta do colégio. Do momento em que a agressão aconteceu até o fechamento desta edição, a direção do colégio aferrou-se à estratégia de minimizar o incidente (veja o quadro na pág. 27). Filho único de um casal de médicos, o adolescente B.B. recebeu uma punição branda: apenas um dia de suspensão. Na manhã seguinte, a coordenadora Maria Elisa Pedrosa qualificava a questão como uma “brincadeira inconsequente”. Na terça-feira 31, uma entrevista do supervisor administrativo do São Bento, Mário Silveira, foi emblemática. Ele elogiou o valentão, afirmando que é um excelente estudante, e disparou: “Esse menino (o agressor) já está mais do que punido. Mais do que aquele que se acidentou, que já está alegre e fagueiro em casa”.

Gil Tokio/Pingado
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A imagem não poderia ser mais equivocada. O garoto agredido, P.H.A.R., não está alegre nem fagueiro. Anda triste, assustado e traumatizado com o episódio. Demonstra dificuldade para dormir à noite e até para ir ao banheiro sozinho. E, apesar de a escola ressaltar o bom desempenho do adolescente agressor nos estudos, ele está longe de ser o santo que os monges beneditinos imaginam. Em seu perfil público no Facebook, expõe fotos de colegas ridicularizados e de seus amigos se exibindo como se fossem traficantes de drogas (veja fotos na pág. 29). Em uma troca de mensagens datada de setembro do ano passado, B.B. combina com outros cinco colegas maneiras de excluir um aluno da turma. O motivo é ele ter flertado com uma garota por quem um deles estava interessado. Nos comentários, o alvo da ira dos jovens é tratado por termos de baixíssimo calão, em português e inglês. Em dado momento, um dos participantes alerta: o que eles estão fazendo é cyberbullying (termo usado para definir o bullying praticado por meio da internet). A resposta é dada em inglês: “He deserves it” (Ele merece).

Com aulas das 7h30 às 16h30, o Colégio de São Bento tem uma rotina puxada e grade disciplinar que envolve, além das matérias tradicionais, música, história da arte, cultura clássica, inglês, francês e espanhol. Embora as mensalidades comecem em 2?000 reais, seus testes de seleção são concorridíssimos. Afinal, ter um filho matriculado em tal estabelecimento é visto pelos pais como a garantia de um futuro promissor ? isso se o filho for homem. Apesar de toda a pressão para flexibilizar suas regras, a escola não admite meninas e, ao contrário do que já foi divulgado algumas vezes, não tem nenhum plano de fazê-lo. A convivência em um universo exclusivamente masculino costuma provocar intensa camaradagem e um ambiente voltado à prática esportiva, especialmente o futebol. Confrontos físicos também são frequentes nos corredores ou no pátio. “Há cinquenta anos, já havia no recreio um grupo de valentões que espancava qualquer garoto franzino que chegasse perto. Uma vez eles me obrigaram a comer papel de bala”, conta o engenheiro químico Bruno Andreoni, de 63 anos, que estudou ali entre 1959 e 1961.

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De fato, enfrentamentos entre garotos são comuns. Pode acontecer em qualquer estabelecimento de ensino ou até dentro de casa. A questão é como a escola pode lidar com esse cenário. Estudos realizados por pesquisadores canadenses apontam que os meninos são muito mais refratários a medidas de prevenção de violência do que as meninas. Segundo a educadora Sibylle Artz, autora de um trabalho que analisou padrões de comportamento de 5?400 crianças em dezesseis unidades educacionais em Vancouver, os programas antiagressões tendem a ser menos eficazes entre os estudantes do sexo masculino, que aceitam intimidações e brigas como parte natural da rotina. Depoimentos postados no Facebook dão uma ideia de como os colegas do aluno valentão costumam se comportar no ambiente escolar. “Quando o D. era tacado na lixeira e apanhava dos mais velhos, ele reclamava, mas nunca chegou sequer na coordenação, no máximo no inspetor”, escreveu um dos adolescentes. Na comunicação do grupo, eles acham normal atacar uma criança que tem menos da metade da idade deles. E aparentam estar sinceramente convencidos de que a agressão foi algo comum.

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Mas o mais assustador em todo o acontecimento é que a direção do São Bento parece concordar. Ao menos, essa é a interpretação que se tira a partir das reações que a escola demonstrou até aqui. Os pais do agredido, Mauricio Meneses dos Reis e Viviane de Azevedo da Silva, souberam do incidente por um telefonema de uma funcionária. Na primeira versão, o menino teria caído sozinho, em um episódio envolvendo um estudante mais velho. Pressionada pelas circunstâncias e pelo relato dos garotos que viram a cena, a direção admitiu depois que havia sido uma “brincadeira inconsequente”. O tom de “isso não foi nada” prosseguiu. Na primeira nota que divulgaram, os monges repudiaram o encaminhamento dado ao caso (ou seja: criticaram a família da vítima por procurar a polícia) e disseram que, da mesma forma que as pessoas têm liberdade para fazer sua matrícula na instituição, são livres para manter ou não seus filhos ali. “Entendi essa colocação como um convite para retirar meu filho do colégio”, diz Viviane de Azevedo. Essa determinação ela cumpriu à risca. Na semana que vem, o garoto deve começar em outro estabelecimento.

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Longe de ser unanimidade, a história suscita paixões na escola. Cerca de trinta pessoas, pais e mães de alunos, assinaram um manifesto se solidarizando com a vítima, mas dando discreto apoio ao adolescente, com frases do tipo “a melhor reconstituição dos fatos não pode ser feita apenas pelo relato de uma das partes envolvidas”. No texto, os signatários rea­firmam sua fé na capacidade dos monges e na “educação libertadora”. Em paralelo, os amigos do agressor estão espalhando em sua defesa que o menino menor teria provocado o maior, querendo participar de uma brincadeira para a qual não tinha tamanho ou experiência. A agressão foi a maneira contundente de mostrar esse ponto de vista.

Isso, evidentemente, não serve de desculpa. Sob o aspecto psicológico, rapazes com 14 anos já têm o que os especialistas chamam de freio inibitório, ou seja, a capacidade de discernir o certo do errado e entender que suas atitudes podem ter consequências mais sérias. Um pouco antes dessa fase, eles aposentam o “foi sem querer” da infância por uma atitude mais condizente com a sua nova faixa etária. “Não dá para admitir esse comportamento como normal, mesmo porque um jovem tem de relativizar provocações de uma criança pequena”, diz o psiquiatra Fábio Barbirato, responsável pelo serviço de atendimento a crianças e adolescentes da Santa Casa.

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Diante do assédio, a família do agressor se fechou. Donos de uma clínica em Niterói, seus pais se recusam a dar entrevistas e detalhes de sua versão sobre o episódio. Procurada por VEJA RIO, a mãe do adolescente, a médica Eliane Baeta Soter da Silveira, disse apenas que tudo não passa de um grande mal-entendido. “Não tenho um delinquente dentro de casa. Meu filho é um bom menino, tem pai e mãe. Só estava na hora errada, no lugar errado. Estou muito triste com isso, mas, se tiver de responder a um processo, responderei.”

Por envolver menores, o fato tem sido encarado na terminologia judicial como uma “infração análoga ao crime de lesão corporal dolosa (com intenção)”. Na prática, isso significa que o adolescente infrator pode receber apenas uma advertência verbal ou, na pior hipótese, ser internado em uma instituição de recuperação. Conduzida pela Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA), a investigação ouviu na semana passada os principais envolvidos. Quando concluir seu trabalho, o que deve acontecer nas próximas semanas, a delegada Valéria de Aragão Sádio o encaminhará ao Ministério Público e ao juiz da Vara da Infância e da Juventude. “Definitivamente, esse assunto ultrapassou os limites do São Bento”, diz ela. Encastelados no mosteiro que fica no topo do morro que leva o nome do colégio, com uma ampla vista da Baía de Guanabara, os monges beneditinos comandados pelo reitor dom Miguel da Silva Vieira entregaram a responsabilidade ao seu departamento jurídico. Como bons beneditinos que são, seguirão zelando pela excelência do ensino, pelo regimento pétreo de sua escola, por suas convicções anacrônicas e, acima de tudo, em silêncio monástico.

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