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Na guerra pela paz

Para não deixarem que o projeto das UPPs sofra um retrocesso, cariocas de diversas inclinações ideológicas e perfis criam um enorme movimento que já tem quase 200 milhões de acessos em rede social

Por Carla Knoplech e Felipe Carneiro
Atualizado em 5 jun 2017, 13h51 - Publicado em 4 set 2013, 18h38

Os tiros que atingiram a sede do AfroReggae no Complexo do Alemão, no fim de julho, com o perdão do lugar-comum, saíram pela culatra. Disparados por bandidos com o intuito de intimidar o grupo, eles deflagraram uma onda de repulsa pela cidade e deram origem a um notável movimento. Sob diversos aspectos, trata-se de uma corrente inédita. Une pessoas de variados perfis, gerações, ideologias, estratos e profissões. Mas o que a torna ainda mais singular é a sua causa. Ao contrário do que se vê em manifestações mais demagógicas, que às vezes romantizam a pobreza e o crime, a turma da foto que ilustra estas páginas defende a ação da polícia e a política de segurança que vem libertando as favelas cariocas do jugo dos traficantes. Na semana passada, essa mobilização tornou público um manifesto com 150 assinaturas de um amplo arco social. Entre os signatários estão executivos de grandes conglomerados, artistas, empresários e alguns dos protagonistas da história recente da política brasileira. “Vamos mostrar aos bandidos armados que esta é uma longa guerra de muitas batalhas, mas que, ao fim e ao cabo, eles a perderão”, afirma o ex-ministro da Fazenda Pedro Malan, executivo do banco Itaú e um dos nomes estelares que constam no documento.

Batizado de Deixem o Rio em Paz, o movimento já nasce impressionante, não apenas pela constelação de personagens alinhados, mas pelo rápido impulso que tomou. Até a última quinta-feira (29), sua página no Facebook contabilizava 192 milhões de visualizações ? como se quase todos os habitantes do país tivessem acessado a rede social para se mostrar solidários à questão. Um dos que se mobilizaram foi o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que fez questão de deixar seu depoimento. Nas áreas esportiva e cultural, essa cadeia do bem é também abrangente. Os times de Vasco e Fluminense já entraram em campo carregando uma faixa com o lema inscrito. Passando do popular ao erudito, a Orquestra Sinfônica Brasileira realizou um concerto no Theatro Municipal para chamar atenção para a causa. Na sequência da programação, uma série de atrações está sendo agendada para setembro: shows, jogos de vôlei com estrelas do passado e até um megaevento de meditação, na Praça Onze. Um grupo de artistas se articula para fazer algo semelhante ao USA for Africa, que, em 1985, juntou alguns dos principais astros do showbiz internacional no clipe We Are the World, um estrondoso sucesso comercial, artístico e filantrópico. Só que, ao contrário do que aconteceu por lá, a mobilização carioca não promove atrações para arrecadar dinheiro. Aqui, a estratégia se resume a sensibilizar o maior número de pessoas e, consequentemente, aumentar o poder de pressão.

GILBERTO TADDAY
GILBERTO TADDAY ()

O esforço é louvável. O Rio de Janeiro vive, de fato, um ponto de inflexão em sua história. Está em jogo hoje um projeto fundamental na área de segurança pública, que tem se mostrado imperativo para a revitalização da cidade, tanto em sua parte cultural como econômica. Depois de muitas vitórias, o ponto fulcral é que as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) enfrentam seu desafio mais delicado. É como se a tempestade perfeita tivesse se formado no horizonte. Na esfera econômica, o programa foi abalado pela retirada da verba milionária que lhe destinava o empresário Eike Batista. Também teve a reputação arranhada pela ocorrência de tiroteios em regiões recuperadas e pelas acusações que pesam contra policiais da UPP da Rocinha no desaparecimento do pedreiro Amarildo de Souza. Como pano de fundo, o momento é de instabilidade política, com a brutal perda de popularidade do governador Sérgio Cabral, seu criador, e o quebra-quebra generalizado nas ruas.

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Foi exatamente nessa fragilidade que os criminosos enxergaram uma brecha para agir. Desde a implantação da primeira UPP, em 2008, no Morro Dona Marta, os índices de violência estão em queda livre no município. Diminuiu o número de homicídios, de mortes em confrontos, de policiais tombados, de vítimas de balas perdidas e de estupros. Ficou para trás também o clima de terror em que vivia 1,2 milhão de moradores das 33 comunidades contempladas com o projeto, que ocasionou perdas vultosas para o tráfico. Estima-se que só na Rocinha e no Alemão as facções tenham amargado um prejuízo superior a 200 milhões de reais. Daí a reação desesperada e covarde em áreas consideradas vitais pelo crime organizado. “O projeto está detalhado até 2018. Mas só posso garantir sua execução até o fim do mandato, no ano que vem. Depois disso é com a população”, reconhece o secretário de Segurança, José Mariano Beltrame.

A reação do Deixem o Rio em Paz tem sido proporcional ao perigo que um retrocesso representaria. Durante muito tempo, moradores de norte a sul da cidade sofreram com a banalização da violência, ficando à mercê de balas perdidas e convivendo com a imagem de adolescentes empunhando fuzis nos morros. É óbvio que ainda existem problemas, mas um primeiro e importante passo foi dado com a ocupação policial de favelas. A medida, evidentemente, tem de ser acompanhada por uma série de iniciativas na área social. Criado há vinte anos por José Junior, seu coordenador, o AfroReggae atua justamente nesse terreno ? daí o simbolismo da ação dos bandidos. O grupo oferece a crianças, adolescentes e adultos de algumas das localidades mais perigosas do Rio uma alternativa longe do tráfico. Com uma estrutura que reúne 400 funcionários e 1?300 alunos, ganhou fama pelas iniciativas de reinserção profissional de gente que abandonou o crime e pelas oficinas de música, circo e teatro voltadas aos moradores dessas regiões. Desde que a sede foi alvejada, no entanto, as unidades do Complexo do Alemão e de Vigário Geral estão fechadas. A ordem do atentado teria partido dos traficantes Fernandinho Beira-Mar e Marcinho VP, trancafiados num presídio de segurança máxima no interior do Paraná e flagrados numa escuta telefônica. Por precaução, Junior passou a andar com escolta policial 24 horas. “É pelas crianças que digo que não vou recuar. Bandido nenhum vai me fazer retroceder”, diz.

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Entre as múltiplas virtudes da democracia, destaca-se a possibilidade de alternância no poder de políticos de variados partidos, pensamentos e convicções. Sempre saudável, a prática pode guardar uma arapuca. Em países de instituições menos sólidas, não é raro o governante eleito decidir acabar com os projetos do antecessor, seja por acreditar ter algo melhor em mente, seja pela mesquinharia de esvaziar o adversário político, o que ocorre na maioria das vezes. O Rio é pródigo em exemplos dessa natureza. Na virada para os anos 90, o governador Moreira Franco esburacou Copacabana e Ipanema com o objetivo de expandir a Linha 1 do metrô. Seu sucessor no Palácio Guanabara, Leonel Brizola, resolveu enterrar a obra, atrasando em mais de uma década a chegada do sistema subterrâneo à Praça General Osório. O caudilho acabou provando do próprio veneno ao ver Marcello Alencar (1995-1999) desmontar o símbolo maior de seu mandato, as escolas em tempo integral, batizadas de Cieps. Nessa briga de comadres, o maior derrotado é sempre o cidadão. Em razão de episódios assim, uma das bandeiras do movimento recém-criado é que as UPPs virem um projeto do estado, independentemente de quem esteja no poder. “Não existe um mecanismo bu­rocrático que garanta a permanência de uma política pública de um governo para o outro”, diz Marco Aurélio Ruediger, um dos diretores da Fundação Getulio Vargas. “A melhor maneira para garantir a continuidade de um programa é a pressão popular, com a sociedade mobilizada em torno da causa, como aconteceu com o Plano Real e a Lei de Responsabilidade Fiscal.”

É sabida a vocação do carioca para protestar, aliada à sua tendência a uma certa rebeldia festiva, o que pode resultar em movimentos sem foco e sem fôlego, como o abraço coletivo em volta da Lagoa, a caminhada de branco pela orla ou as faixas estendidas na janela com a inscrição “Basta”. Embora a turma também use camisas brancas, desta vez, há indícios consistentes de que essa corrente chegou para ficar ? e influir no futuro do Rio. “O tiro no AfroReggae atingiu a cidade toda. É diferente da chacina de Vigário Geral, que não produziu toda essa comoção. Naquela época, não havia uma proposta clara. Agora temos”, diz o jornalista e escritor Zuenir Ventura, autor do livro Cidade Partida. De fato, a retomada de territórios antes dominados por marginais é uma conquista irreversível. No ponto onde estamos não cabe retrocesso, mas, sim, seguir em frente.

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