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Choque de civilidade

É do que o Rio precisa na preparação para a Copa e a Olimpíada. Abandonar maus hábitos que envenenam a convivência urbana é o maior legado que a cidade pode herdar dos grandes eventos

Por Felipe Carneiro e Ernesto Neves
Atualizado em 5 jun 2017, 13h56 - Publicado em 17 jul 2013, 14h19

Somos bons de reclamar, disso não há a menor dúvida. Falamos mal do trânsito, da demora das reformas urbanas que estão virando a cidade pelo avesso, da precariedade do Galeão e do custo astronômico de viver em um lugar que alcançou visibilidade global. No entanto, às vésperas de recebermos a Jornada Mundial da Juventude, cabe perguntar: estamos, de fato, prontos para a sucessão de eventos internacionais que vêm por aí? Para chegar à resposta não basta apontar para a estrutura dos palcos que receberão o papa Francisco em Guaratiba e Copacabana ou a profusão de tapumes que cercam túneis, estações de metrô e instalações esportivas. É preciso uma avaliação mais profunda dos hábitos nocivos arraigados em nossa cultura. Em maior ou menor grau, foi o que fizeram metrópoles que passaram por situação parecida, como Paris, Berlim, Atenas e Pequim, sedes recentes de Jogos Olímpicos ou Copas do Mundo. Prestes a se exporem para o resto do mundo, reconheceram mazelas vexatórias ? a falta de cortesia com que tratavam estrangeiros no caso das duas primeiras e as manias de jogar lixo na rua e cuspir no chão nas demais ? e se propuseram a mudar. “Precisamos admitir que não somos hospitaleiros como gostamos de apregoar por aí e que cobramos caríssimo por um serviço péssimo, como se o fato de a cidade ser bonita justificasse o preço”, dispara Marco Mello, coordenador do Laboratório de Etnografia Metropolitana da UFRJ (LeMetro/IFCS-UFRJ).

A resistência carioca em seguir regras básicas ? como ser pontual, respeitar filas e comportar-se em ambientes públicos ? costuma ser amplamente debatida. Alguns atribuem essa coleção de vícios aos resquícios da passagem da família real portuguesa por aqui, uma vez que a partir do desembarque, em 1808, os fidalgos lusitanos passaram a fazer o que queriam, à revelia das consequências para o populacho. Outros preferem a teoria da paixão latina sobrepondo-se à racionalidade europeia. Seja qual for a tese encampada, o que importa é saber se há esperanças de que, depois de 2016, a cidade terá um legado que vá além do cimento espalhado por aí: uma sociedade mais civilizada. “O carioca tem como traço ser extremamente maleável, adere a novidades com uma facilidade incrível. Com os estímulos certos, pode evoluir muito”, diz Bernardo Conde, professor de antropologia da PUC-Rio. Com o objetivo de contribuir para esse processo, VEJA RIO levantou dez hábitos nefastos que maculam nosso estilo de vida e buscou, com o auxílio de especialistas e de exemplos de outros países, maneiras de alcançar um convívio mais harmonioso e receptivo. Se isso de fato vai acontecer, depende de cada um de nós.

Trancar cruzamentos

Revirada por obras e com uma frota de automóveis que praticamente dobrou na última década, a cidade anda com sua malha viária à beira da esclerose. Mas, se o excesso de veículos e os tapumes em abundância estrangulam o tráfego, o carioca também contribui ? e muito ? para que a situação seja ainda mais enervante. Quem nunca avançou um cruzamento com o sinal prestes a fechar, na esperança de que o seguinte logo vá abrir, mesmo prejudicando os outros motoristas? Na última terça-feira (9), entre 17 horas e 18h30, 35 motoristas acharam por bem ignorar a marca quadriculada em amarelo no asfalto entre as ruas J.J. Seabra e Lineu de Paula Machado, na Lagoa, e enfiar o carro no meio do cruzamento. Nem sequer se incomodaram se sua atitude afrontava quem esperava a vez do outro lado da encruzilhada. Diante do desrespeito flagrante, a maneira mais óbvia de coibir tal comportamento, mas não necessariamente a mais eficaz, é por meio de multas. Quando era prefeito de Bogotá, Antanas Mokus acabou com a má prática na capital colombiana ao trocar os guardas de caneta na mão por mímicos e palhaços que entregavam cartões vermelhos com um polegar para baixo aos infratores e faziam graça da situação. Em um ano, o medo do ridículo levou a uma espécie de autorregulação e ninguém mais fechou o cruzamento. A mesma medida foi adotada em Caracas, na Venezuela. Na semana passada, a prefeitura iniciou uma campanha nas esquinas onde mais se tranca o tráfego no Rio. Se os hermanos conseguiram, a gente também pode.

Infringir regras e leis

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No Rio, criou-se uma cultura segundo a qual é possível adaptar às regras de convivência e às leis a mesma elasticidade e a mesma tolerância que caracterizam o comportamento e as relações sociais. Estacionamos sobre a calçada, levamos o cachorro para passear na areia, pagamos o flanelinha para tomar conta do carro e manobrá-lo e nos divertimos em mesas de bares instaladas de forma irregular em áreas públicas. E reclamamos de tudo isso quando são os outros que fazem. “Nossas ações são contraditórias. Se estou no ponto e o ônibus passa direto, fico indignado. Mas se estivesse dentro dele acharia ótimo, já que vou chegar mais rápido ao trabalho”, compara o antropólogo Bernardo Conde. Ao contrário do que acontece em outros lugares, principalmente na Europa e nos Estados Unidos, onde não se transige com normas e regras, por aqui é comum recorrer à emoção e ao apelo à amizade para dar aquele jeitinho e conseguir o que se pretende. “A simpatia e a amizade são poderosos recursos para abrir portas e obter o que se deseja”, diz. A questão é que o privilégio que conseguimos, mesmo que seja um simples jogo de frescobol em local proibido, prejudica várias outras pessoas.

Jogar lixo no chão

Os mesmos visitantes que se encantam com as maravilhas naturais do Rio custam a acreditar na quantidade de detritos espalhada em nossas vias públicas ? uma vergonha. Os números dão a dimensão exata do desleixo. Um terço das 9?000 toneladas de lixo coletadas pela Comlurb diariamente é recolhido diretamente das ruas, não das lixeiras. Não escapam nem mesmo as praias, território sagrado para qualquer carioca. A cada domingo, são removidas espantosas 180 toneladas de sujeira das areias. Na semana passada, a prefeitura iniciou a campanha Lixo Zero, para convencer o carioca a manter a cidade limpa, prometendo punir quem jogar detritos no chão com multas de até 3?000 reais. É uma tática que já foi adotada em outros lugares, como Atenas. Antes da Olimpíada de 2004, a capital grega enfrentava situação parecida com a do Rio. O governo investiu 42 milhões de dólares numa operação de faxina imensa que incluiu a compra de uma frota de 230 caminhões novos e a instalação de mais de 5?000 lixeiras. A cidade ficou um brinco. O problema é que, assim que os convidados foram embora, as campanhas educativas saíram do ar. Foi o que bastou para a volta da imundície.

Furar fila

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A cena é comum. Ao deparar com a enorme fila, o recém-chegado procura por algum rosto conhecido. Uma vez que reconheça alguém, o folgado simplesmente entra no lugar em que se encontra seu amigo, passando à frente de todos. Às vezes, a infiltração se dá de forma ainda mais grotesca, quando a pessoa se aproveita da falta de atenção de algum dos que estão esperando a vez. No Rio, sejamos francos, cultivamos o hábito de levar vantagem em situações como essa. Aqui é comum contar com entusiasmo façanhas em que o narrador se saiu melhor que os demais, uma espécie de Macunaíma moderno, um herói sem caráter ? não raro, sendo protagonista de uma das situações mencionadas acima. Pois está mais do que na hora de mudar esse comportamento. Poucas coisas são tão estressantes quanto aguardar para ser atendido. Nessa seleta lista, fulgura com certeza ser prejudicado por engraçadinhos e madames com dotes teatrais que se consideram acima dos outros e entram na frente com uma tremenda cara de pau. Mas há sinais de avanço. Um exemplo foi o comportamento da torcida durante a Copa das Confederações. Nos jogos no Maracanã, a entrada e a saída do estádio foram relativamente ordeiras. Se podemos fazer isso em um jogo de futebol, é possível repetir tal comportamento em nosso dia a dia.

Não respeitar os horários

O desprezo pelo relógio é um exemplo de como hábitos do passado podem não apenas se enraizar mas se perpetuar por séculos sem que ninguém entenda direito o motivo. A falta de pontualidade era comum nos tempos da corte, quando a nobreza reafirmava seu poder ao fazer os outros esperarem. Hoje, desperdiçar o tempo alheio tornou-se regra. De consultas médicas a aniversários, todo tipo de programação está sujeito a atrasos. O desmazelo com horários é tolerado e encarado como sinal de informalidade. “No Rio, não é desrespeitoso aparecer depois da hora marcada”, explica a socióloga Simone Terra. “O carioca tem necessidade de ser rebelde, e detesta ser enquadrado.” Porém, ignorar essa norma básica de civilidade não tem nada de descolado. Trata-se de uma falta de respeito generalizada que vai gerando um imenso efeito em cadeia. O curioso é que todo mundo reclama quando obras demoram a ficar prontas ou espetáculos começam depois do previsto.

Urinar na rua

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A cena foi retratada pelo artista francês Jean-Baptiste Debret na primeira metade do século XIX. Um fidalgo de casaca se alivia junto a uma parede, ao lado de seu cavalo, enquanto um escravo o protege com uma sombrinha. Tal flagrante da falta de educação está longe de ser apenas uma aquarela constrangedora do passado. No Carnaval deste ano, 808 pessoas foram detidas por urinar na rua. Além de isso ser uma óbvia afronta à higiene, há outras implicações. “A urina degrada o ambiente e chega a corroer paredes de construções históricas”, diz Alex Costa, secretário municipal de Ordem Pública. Os adeptos dessa prática execrável costumam recorrer ao patético argumento de que não existem banheiros suficientes para atender a multidão de foliões, embalada por quantidades colossais de cerveja. É uma desculpa mais do que esfarrapada. Basta conferir a brutal diferença entre a quantidade de homens e a de mulheres flagrados pela polícia ? 741 contra 67. “Se elas conseguem se planejar para que isso não aconteça, então não é um problema de falta de banheiros”, resume Costa.

Descaso com os turistas

Fernando Lemos
Fernando Lemos ()

No caminho entre a saída do porto e a Praça XV não há um banco sequer, apesar da fantástica vista da Baía de Guanabara que os viajantes poderiam querer usufruir. O Galeão está caindo aos pedaços, e a via expressa que o liga ao Centro recende a putrefação. A Avenida Brasil também não causa uma boa primeira impressão aos visitantes. Pode parecer bobagem apontar os problemas das portas de entrada da cidade quando, uma vez passado o choque inicial, os turistas se encantam com uma das paisagens mais bonitas do mundo. Mas eles são uma prova concreta do pouco-caso que o carioca tem pelo forasteiro. A pedido de VEJA RIO, dois estrangeiros caminharam por Ipanema, Leblon e Copacabana pedindo orientações, em inglês ou espanhol, para chegar ao Pão de Açúcar e ao Corcovado. Dos cinquenta abordados, apenas dezenove se dispuseram a ajudar ? e três deles deram informação errada. “A impressão é que o carioca às vezes se ressente de dividir sua cidade com o turista e adota uma postura hostil ao forasteiro”, avalia o uruguaio Jorge Campos, de 29 anos.

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Mau uso dos transportes públicos

O sistema de transporte urbano anda na boca do povo, e de maneira nada elogiosa. Reclama-se do número insuficiente de barcas, do mau serviço nos ônibus, da lotação do metrô, do preço de todos eles. Há razão para tanta grita, o serviço é ruim mesmo. Mas os usuários também merecem um puxão de orelha. Não se respeitam os assentos prioritários de grávidas e idosos, ouve-se música nas alturas e sempre há alguém parado na porta, atrapalhando a entrada e a saída. “Os cariocas não se veem como cidadãos no transporte de massa, mas como consumidores mal atendidos”, diz Ana Lycia Gayoso, da ONG Rio Eu Amo Eu Cuido. “Essa é a típica situação em que a mudança deve partir dos próprios usuários, que precisam ter autocrítica e gerar exemplo com pequenas atitudes que causam um impacto grande.”

Atendimento precário

Selmy Yassuda
Selmy Yassuda ()
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O carioca é muito caloroso com seus conhecidos e em momentos de lazer, mas dificilmente demonstra simpatia quando presta algum tipo de serviço. Mordaz e certeiro, esse é o diagnóstico que Carlos Mendes Rosa, professor de psicologia social do IBMR, faz de nosso padrão de atendimento. É uma situação comum, por exemplo, chegar a um guichê de pagamento e ver o caixa às gargalhadas com seus colegas, mas imediatamente fechar a cara para o cliente. “É uma cultura de ?aos amigos, tudo; aos inimigos, o rigor da lei??”, teoriza Rosa. O Rio não está sozinho quando se levam em conta o mau humor e a rabugice dos funcionários públicos, balconistas, garçons e recepcionistas. Cidades como Paris e Berlim, por exemplo, são notórias pelo azedume dos prestadores de serviços. Em ambas, isso foi motivo de preocupação às vésperas das Copas do Mundo de 1998 e 2006. Tanto parisienses quanto berlinenses foram alvo de maciças campanhas educativas para que demonstrassem maior delicadeza aos visitantes. Para Jayme Drummond, consultor de hotelaria e gastronomia, os empresários cariocas têm de investir em treinamento ? o que quase não fazem ?, mas a qualificação por si só não basta. É preciso entender que a satisfação do cliente é essencial para o negócio.

Celular fora de hora

Poucos artefatos tecnológicos tiveram um impacto tão avassalador sobre o dia a dia quanto o celular. Há duas décadas, quem andava por aí com o aparelho pendurado no cinto e atendia a chamadas durante um papo com amigos era ridicularizado. Hoje, a situação é a oposta: quem resiste a aderir aos smartphones é logo tachado de antiquado. Mas algumas atitudes do carioca ao celular desrespeitam até mesmo o mais tolerante código do bom-tom. Conversas em viva-voz no último volume, checagens de mensagem e e-mail durante uma conversa, toques durante sessões de cinema ou teatro, a lista é infindável. “A etiqueta do celular ainda está sendo desenvolvida, e é preciso que as pessoas digam quando estão incomodadas, sem ter medo de ser chatas. Se os maus hábitos não forem cortados nesse estágio inicial, será muito mais difícil mudá-los quando estiverem entranhados na cultura”, afirma a antropóloga australiana Heather Horst, autora do livro The Cell Phone: An Anthropology of Communication, ainda sem tradução no Brasil, que aborda o impacto do telefone móvel nas relações humanas. Portanto, não há nada de mau em olhar feio e reclamar cada vez que se sentir incomodado por alguém que passa dos limites no uso do aparelho.

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