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Juventude interrompida

A morte da adolescente Maria Candida Portinari no banheiro de sua casa, em São Conrado, chama atenção para os perigos e riscos de acidentes provocados por aquecedores a gás

Por Sofia Cerqueira, Caio Barretto Briso e Letícia Pimenta
Atualizado em 5 jun 2017, 14h06 - Publicado em 3 abr 2013, 20h14

A banheira instalada no 2º andar da residência da família Portinari, em São Conrado, sempre foi pouco utilizada. Seus moradores achavam pouco prático enchê-la e preferiam usar o chuveiro convencional, no banheiro da suíte principal, localizada no 3º andar. Na tarde de domingo (24), Maria Candida, de 16 anos, filha do professor universitário João Candido Portinari Filho e da advogada Maria Edina Portinari, resolveu quebrar a rotina. Ligou a torneira da água quente e, enquanto acertava a temperatura, conversou com a empregada da casa. Quando ela saiu, Maria Candida fez um pedido: “Por favor, feche a porta”. Foi a última frase da jovem, uma linda garota de longos cabelos castanho-claros e impressionantes olhos azuis. O pai, filho único do pintor Candido Portinari (1903-1962), estranhando a demora do banho, bateu na porta e, sem receber resposta, entrou para ver o que acontecia. Encontrou a adolescente desacordada, submersa na água. Todas as tentativas de ressuscitá-la foram infrutíferas. “Ele me ligou dizendo que havia acontecido uma tragédia e que a Maria Candida estava morta. Disse ainda que havia sido o gás do banheiro”, conta Sueli Avelar, amiga da família e uma das coordenadoras do Projeto Portinari, comandado por João Candido.

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A tragédia, ocorrida em um aprazível condomínio da Estrada das Canoas, destruiu aquilo que, sem sombra de dúvida, constituía uma família feliz. Maria Candida era a caçula de três filhos de João Candido, que tem 74 anos ? Denise Berruezo Portinari e João Carlos Portinari, mais velhos, nasceram do primeiro casamento. Para realizar seus sonhos, o professor de matemática passava por cima de velhos preconceitos. No Carnaval, ele, a mulher e a jovem embarcaram para uma viagem a Orlando, nos Estados Unidos. “Estou gostando mais ou menos, mas compensa porque ela está amando”, escreveu em uma mensagem enviada da Flórida pelo smartphone a uma amiga. Maria Candida se encantou particularmente com a visita ao parque temático do bruxinho Harry Potter, de quem era fã. “Ela ainda estava colocando as fotos da viagem no Facebook. Às 11 horas de domingo, por exemplo, publicou várias”, diz a madrinha Christina Penna. Confiante e cheia de vida, a jovem fazia amigos com facilidade. Nas últimas semanas, estava entusiasmada com a nova escola, o Colégio Santo Inácio, em Botafogo, que frequentava desde o início do ano letivo. “Ela sonhava em ser engenheira civil ou veterinária, pois adorava animais. Tinha dois papagaios e dois cachorros. O mais novo deles era o Yoda, um pug que ganhou de presente no Natal”, relata sua vizinha e melhor amiga, Ana Carolina Davies Café, 16 anos. Arrasado, Marcus Portella, o namorado, que esperava Maria Candida sair do banho para que fossem juntos ao cinema, simplesmente não se conformava com o que havia acontecido: “Ela foi minha primeira namorada. Nunca pensei que pudesse acabar assim”, disse, emocionado.

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As investigações sobre as circunstâncias da morte de Maria Candida ainda estão em andamento, e não se conhecem todos os detalhes do acidente. Até a quarta-feira passada, a polícia não trabalhava com outra hipótese além da asfixia por monóxido de carbono, subproduto tóxico da queima do gás presente em aquecedores domésticos. De acordo com o delegado Orlando Zaccone, da 15ª DP, na Gávea, responsável pelo caso, o corpo da moça tinha sinais compatíveis com essa possibilidade. Além disso, o condomínio onde ela residia não é servido pela rede de distribuição da Companhia Estadual de Gás (CEG), motivo de uma antiga reivindicação dos moradores. A banheira era abastecida por um aquecedor instalado internamente e o combustível vinha de botijões de 45 litros, semelhantes aos utilizados em restaurantes. Esse mesmo sistema é adotado no outro banheiro, que contava com seu próprio aquecedor, também instalado do lado de dentro. “Ninguém jamais imaginou que algo assim pudesse acontecer, mesmo porque o banheiro tinha uma janela. Eu mesma o usei algumas vezes, pois ficava junto ao quarto de hóspedes da casa”, afirma Sueli Avelar.

A vida interrompida de uma adolescente com todo o futuro pela frente é uma situação devastadora, pois inverte o que consideramos a ordem natural das coisas. Nenhum pai ou mãe consegue se imaginar passando por tal provação. Por isso, mesmo sem conhecer a família, ninguém fica alheio à tragédia. No caso específico, a morte de Maria Candida provoca ainda uma reflexão sobre as armadilhas a que estamos sujeitos dentro de nosso próprio lar. “Sempre nos preocupamos com as más companhias, com as drogas e a violência no trânsito, achando que o único lugar onde o filho está protegido é ao nosso lado, dentro de casa. Na verdade, isso não passa de uma ilusão”, desabafa a madrinha, Christina Penna. De fato, o que não falta são exemplos de quanto o ambiente doméstico, com todo o seu aconchego, pode ser perigoso (veja o quadro na pág. 28). Em uma cidade densamente povoada como o Rio, com apenas 800?000 domicílios abastecidos pela rede de gás encanado e outros 800?000 com botijões, o risco é uma realidade. Os acidentes mais frequentes, como se suspeita ter acontecido na casa dos Portinari, têm a ver com o processo de exaustão do monóxido de carbono, resultante da combustão. Se o ambiente onde o aquecedor estiver instalado não tiver circulação de ar suficiente, ou se a chaminé do aparelho estiver com algum problema, as pessoas poderão desmaiar em poucos minutos, sem nem perceber o que está acontecendo. “O vapor da água, na hora do banho, ajuda a camuflar a situação. É uma morte silenciosa”, afirma o engenheiro Moacyr Duarte, professor da Coppe/UFRJ e especialista em análise de risco.

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Dentro de nossa própria casa, as tubulações e os equipamentos de gás não são a única ameaça que costumamos negligenciar. As instalações elétricas são igualmente um foco de riscos, como comprovam recentes incêndios em apartamentos da cidade. É frequente proprietários e inquilinos dispensarem à pintura atenção maior do que a que dedicam à rede elétrica. Resultado: muitos prédios antigos, apesar da aparência bem conservada, escondem um verdadeiro cipoal de fios e cabos sem condições de suportar a atual demanda de energia dos moradores. Com poucas tomadas espalhadas pelos cômodos, conexões improvisadas por meio de extensões e filtros de linha tornaram-se rotina nos imóveis. “Temos a ilusão de que controlamos o que está na nossa casa. No caso dos sistemas inflamáveis, o rigor precisa ser absoluto”, diz Agostinho Vieira, presidente do Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura (Crea).

Trata-se de mais uma batalha em que o cidadão está sozinho. Recentemente, o Ministério Público Estadual tentou obrigar a CEG a inspecionar uma vez por ano as unidades comerciais e residenciais a que atende. Mesmo cobrando caro para fazer as adaptações, a empresa recorreu e conseguiu reverter a ação. Na Assembleia Legislativa tramita desde 2007 um projeto de lei com objetivo semelhante, mas não há perspectiva de que ele saia da gaveta nos próximos meses. Na ausência de uma estrutura eficiente de fiscalização, seja por parte das empresas concessionárias de serviços, seja pelo poder público, cabe a cada um zelar pelo que acontece entre as paredes de casa adotando condutas relativamente simples, como realizar revisões periódicas em aquecedores, instalações elétricas, registros e conexões de gás. É responsabilidade dos moradores informar-se sobre as recomendações das empresas distribuidoras de gás e energia ou procurar (e pagar) os serviços de técnicos especializados. Pode não ser justo, pode não ser agradável, mas a tranquilidade de uma vida livre de acidentes não tem preço.

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