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Carnaval levado a sério

Formado por médicos, arquitetos, músicos, bailarinas, engenheiros e advogados, entre outros profissionais, o corpo de quarenta jurados do Grupo Especial vive as tensões (e as delícias) de escolher a escola de samba campeã do desfile carioca

Por Caio Barretto Briso
Atualizado em 5 jun 2017, 14h10 - Publicado em 13 fev 2013, 19h56

O desfile das escolas de samba do Rio é um espetáculo superlativo sob qualquer ângulo que se analise, seja da indústria que movimenta, do encantamento artístico que proporciona ou de seu poder de sedução. Quando a Inocentes de Belford Roxo abrir a festa na noite deste domingo, uma explosão de alegria tomará de assalto o público na Marquês de Sapucaí, além dos milhões de telespectadores dos 118 países para os quais o cortejo tem transmissão ao vivo. Em meio à contagiante empolgação, um diminuto grupo de quarenta pessoas, acomodado em espaço nobre da avenida e com visão privilegiada da pista, se manterá completamente abstraído da algazarra. Cabe a elas avaliar cada detalhe e cenas que normalmente escapam aos olhos do grande público, como o mau acabamento de um carro alegórico, a evolução equivocada de uma porta-bandeira, o andamento acelerado da bateria ou a cratera que ficou entre uma ala e outra. Nada deve passar incólume pelo crivo dos julgadores, que é como a Liga Independente das Escolas de Samba (Liesa) se refere ao corpo de jurados que tem a responsabilidade de apontar a agremiação campeã do Grupo Especial. Para eles, Carnaval não é brincadeira ? pelo contrário, é um momento extremamente solene. “Sempre acho que vou estar mais calmo no ano seguinte, mas fico tenso do mesmo jeito”, reconhece o músico Cláudio Luiz Matheus, 56 anos, um dos mais longevos membros da bancada. “Até hoje torço para que minha nota não seja a decisiva.”

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A força-tarefa que determina a escola ganhadora e a rebaixada é um balaio que inclui arquitetos, médicos, músicos, bailarinas, professores, engenheiros, cantores e jornalistas, entre outros profissionais (veja o quadro na pág. 18). Há de tudo um pouco, menos bambas ou gente ligada a escola de samba, como se poderia supor. Quase a totalidade do júri tem pouca ou nenhuma exposição na mídia, como é o caso da dentista Marisa Maline, dona de um consultório na Tijuca, e do engenheiro Paulo César Morato, funcionário da Petrobras. Ao aceitarem o convite, eles automaticamente abrem mão de uma série de coisas. Não podem mais frequentar quadras nem ensaios. Outra recomendação é para que mantenham uma vida discreta, evitando fotos ou aparições públicas. Nos dias de desfile, as regras são ainda mais draconianas. No domingo e na segunda-feira de festa, devem se apresentar às 6 da tarde na sede da Liesa, no Centro. De lá, seguem de micro-ônibus para o Sambódromo. Uma vez instalados em seus módulos, eles não podem usar celular. Um supervisor da Liga fica sempre a postos, fiscalizando. Quando os jurados vão ao banheiro, um guardião vai junto. “No ano passado, o segurança me acompanhou todas as dez vezes em que fui ao toalete. Nunca me senti tão importante”, conta, com bom humor, o percussionista Sérgio Naidin, 51 anos e há quatro jurado do quesito bateria. A contrapartida de tantas restrições é um tratamento vip que inclui garçons, petiscos, jantar e bebidas à disposição, desde que não sejam alcoólicas. Além de ganhar 3?000 reais a título de pró-labore e de ocupar o filé-mignon da Sapucaí, cada um deles tem direito a levar um acompanhante, que assiste ao desfile em um camarote vizinho.

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Certamente não é o dinheiro nem os rapapés que seduzem os julgadores, sempre expostos a pressões e à chiadeira de alguém que no final pode se sentir prejudicado. É notória a autoridade de chefes do jogo do bicho em determinadas escolas. Porém, movidos pelo fascínio que todo poder exerce, além, é claro, da vaidade e, vá lá, do espírito colaborativo, os jurados se engajam na missão. Há diversos caminhos para alguém se tornar um deles, mas todos passam pelo economista Jorge Castanheira, 50 anos, o presidente da Liesa, homem de confiança dos contraventores que já presidiram a organização. Ele tem voz ativa na escolha dos integrantes do júri, que a cada ano é renovado ? mas não muito. Desta vez, por exemplo, há apenas um estreante: a figurinista e professora de teatro Patrícia Nunes. Com a saí­da de um jurado do quesito fantasia no ano anterior, Castanheira precisava encontrar outro. Como é seu costume nessas oca­siões, buscou dicas com amigos. O nome de Patrícia Nunes partiu da diretora de teatro Cacá Mourthé, que, por sinal, já atuou como julgadora. Ao entrevistar a candidata, o dirigente teve a certeza de estar diante da pessoa certa para a função.

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Há outras formas de encaminhamento. Incentivado por amigos, o publicitário John­ny Soares mandou seu currículo para a Liesa. Aprovado nesse vestibular, cuja última etapa é a confirmação do plenário da casa, reunindo os presidentes das escolas, ele se tornou um dos quatro avaliadores de enredo, quesito no qual tem a companhia do professor de história e geografia Pérsio Gomyde Brasil, autor do livro Da Candelária à Apoteose. “Sou um estudioso do tema”, afirma ele. Nada, entretanto, que se assemelhe ao processo de admissão da dentista Marisa Maline, 52 anos. Seu contato com o Carnaval limitava-se a atender em seu consultório o intérprete Dominguinhos do Estácio, à época na Viradouro. Sem maiores pretensões, ela sugeriu ao paciente um enredo sobre o sorriso. Para sua surpresa, a proposta foi aceita pela escola de Niterói, que levou o tema para a avenida em 2005. Assim, Marisa passou a frequentar esse universo, acabou se aproximando do mandachuva Castanheira e recebeu convite para ingressar no grupo de jurados de enredo, do qual faz parte desde 2008.

Como o próprio Carnaval, que experimentou inúmeras transformações num período recente (vide o gigantismo das alegorias e os efeitos visuais das comissões de frente), o sistema de avaliação mudou muito. Decanos entre os julgadores, com vinte desfiles cada um, o músico Cláudio Luiz Matheus, o jornalista Carlos Pousa e o arquiteto Rafael David são testemunhas dessas modificações. Nas décadas de 80 e 90, os jurados eram alojados em um hotel, de onde só saíam para a Sapucaí. “Ficávamos em regime de confinamento”, lembra Matheus. Havia compensações, como a liberação de bebida alcoólica em pleno camarote. A turma podia ainda aceitar presentes dados pelas escolas a pretexto de bom relacionamento, algo hoje proibido. Em outras épocas, as polêmicas envolvendo a apuração eram frequentes, a ponto de a abertura dos envelopes de notas ser transferida para um regimento da Polícia Militar no começo dos anos 70. Em 1989 houve muita reclamação da Beija-Flor, que fizera uma apresentação antológica, marcada pela ala de mendigos. No entanto, a perda de uma fração preciosa no samba, numa avaliação criteriosa do jornalista João Máximo, fez com que o título voasse para a Imperatriz. A última controvérsia ocorreu em 2011, quando o músico Luiz d?Anunciação sapecou um 9 para a bateria da Mangueira ? o que equivaleria a dar nota 0 neste ano, uma vez que o sistema foi modificado e a pontuação agora é fracionada de 9 a 10. Contestada pela Verde e Rosa e pelo próprio presidente da Liesa, a avaliação custou o cargo do julgador.

Não há como eliminar o caráter subjetivo das análises. Cabe aqui o lugar-comum: cada cabeça, uma sentença. Mas, para padronizar os critérios, os jurados contam com algumas ferramentas. Uma delas é o Abre-Alas, um calhamaço publicado anual­mente, que desta vez reúne quase 600 páginas com o bê-á-bá de cada um dos des­files. Outra é o Manual do Julgador, cartilha que eles devem seguir à risca. Há ainda uma palestra com duração de até oito horas voltada a veteranos e calouros, aberta ainda aos presidentes das agremiações. Quem ministra esse minicurso é o próprio Castanheira, que tenta destrinchar os dez quesitos avaliados.

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O julgamento funcionaria melhor se fossem usadas imagens, sem dúvida de grande valia para mostrar erros e acertos flagrados na avenida, como prova o jurado Bruno Chateaubriand (um dos poucos nomes conhecidos do grupo). No Carnaval, ele chega a fazer 600 imagens, destacando defeitos e qualidades das alegorias. Em 2011, enquanto mirava sua câmera para a pista, ele não percebeu que o tenista Gustavo Kuerten, destaque da Grande Rio, arremessava bolinhas de tênis para a plateia. Numa dessas, Chateaubriand foi acertado bem na testa. “A sorte do Guga e da Grande Rio foi que o desfile não valia pontos”, brinca o jornalista. Naquele ano, um incêndio destruíra o barracão da escola, que cruzou a Passarela do Samba sem entrar na disputa. O episódio serviu para Chateaubriand sentir na pele que a vida de jurado pode ser uma tremenda dor de cabeça.

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