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Um oásis de excelência

Com 1 000 cirurgias realizadas em um ano de funcionamento, o Instituto Estadual do Cérebro torna-se um exemplo de qualidade na combalida rede pública de saúde

Por Carolina Barbosa
Atualizado em 2 jun 2017, 13h03 - Publicado em 30 jul 2014, 17h57

Foi preciso coragem para a universitária Ana Carina Tauche sentar-se no banco junto ao piano de cauda. Afinal, tratava-se de uma área pública, com aquele típico vaivém de pessoas. Estudante autodidata de música, ela só havia tocado em teclados elétricos, bem diferentes do instrumento estupendo que tinha à sua frente. Assim que os primeiros acordes tomaram o salão, os transeuntes diminuíram o passo e pararam para ver a apresentação. Ana Carina tocou cinco canções, todas elas hinos religiosos da igreja evangélica que frequenta em Campo Grande, na Zona Oeste. Ao terminar, foi aplaudida pela pequena plateia formada principalmente por médicos e enfermeiros. A performance aconteceu no saguão de um hospital, mais precisamente no Instituto Estadual do Cérebro, dez dias depois que a jovem teve removido do cerebelo um tumor benigno do tamanho de um limão. “Foi uma cirurgia complexa, e fiquei muito preocupada com a minha recuperação. Ao tocar ali, no próprio hospital onde fui operada, percebi que não teria sequelas e que minha coordenação motora estava intacta”, diz a estudante de 19 anos, cuja cabeleira esconde a cicatriz de um palmo na nuca.

Divulgação
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Sob vários aspectos, o Instituto Estadual do Cérebro destoa do estereótipo de um hospital público carioca ? o piano no saguão é apenas um deles. Instalado no prédio de quatro andares que sediava o antigo Instituto Nacional de Traumatologia e Ortopedia (Into), no Centro, o IEC acolhe pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS) que sofrem de doenças ligadas ao sistema nervoso e precisam passar por cirurgia. São pessoas acometidas por aneurisma, tumor, AVC, Parkinson ou epilepsia e que necessitam de intervenções complicadas. Para a tarefa, o complexo dispõe de 44 leitos de UTI, nove ambulatórios e 523 funcionários, sendo 180 deles médicos de variadas especialidades. Na lista há ainda enfermeiros, fisioterapeutas, fonoaudiólogos e psicólogos. Há duas semanas, essa equipe comemorou um feito notável: a realização da milésima cirurgia, uma operação que removeu um tumor da cabeça da empregada doméstica Pedrolina Macedo Freitas, de 45 anos. Maranhense e moradora de Seropédica, ela estava perdendo a visão e a audição em decorrência do problema. “Sinto que nasci de novo. Nem acredito que estou enxergando e ouvindo tudo outra vez”, diz Pedrolina, que teve alta na última segunda-feira (21).

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A paciente número 1?000 do IEC foi operada pelo carioca Paulo Niemeyer Filho, de 62 anos de idade e quase quatro décadas de neurocirurgia. Diretor médico do hospital e um dos nomes mais importantes da especialidade no país, ele é herdeiro de um dos pioneiros do ramo, o médico Paulo Niemeyer (1914-2004), cujo nome foi incorporado à denominação oficial do instituto. Apesar da agenda carregada em seu consultório, na Gávea, ele conseguiu acompanhar de perto todas as etapas do projeto, que custou 80 milhões de reais. Percorreu alguns locais similares mundo afora e visitou quase que diariamente as obras. Nasceu assim uma instituição modelar, onde a decoração caprichada divide espaço com equipamentos de alta tecnologia e instalações que não existem nem mesmo nas unidades particulares da cidade. Entre elas está a chamada sala híbrida, que dispõe de um aparelho de ressonância magnética dentro do centro cirúrgico. Quando o médico precisa saber a real extensão de um tumor durante a operação, ele desliza a cama com o paciente por um trilho até o equipamento de imagem. Cada uma das quatro salas de cirurgia do complexo é dotada ainda de um neuronavegador, aparelho capaz de fazer uma leitura tridimensional do cérebro e indicar com precisão milimétrica o local afetado. “São instrumentos complementares e de grande valia. A ressonância mostra a imagem detalhada da lesão, e o neuronavegador aponta o melhor caminho para chegar lá”, diz Paulo Niemeyer Filho.

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Como o próprio nome revela, o Instituto Estadual do Cérebro se propõe a ser mais que uma casa de saúde. A ideia é que agregue a pesquisa científica ao atendimento à população e também funcione como um núcleo de formação de jovens médicos. Diariamente, a equipe se reúne para debater o prognóstico dos pacientes e detalhar as técnicas empregadas nos tratamentos. Em alguns casos, as abordagens acabam estabelecendo parâmetros até então desconhecidos pela literatura médica. Foi o que aconteceu com um bebê de 20 dias, atendido pelo médico Daniel Cavalcanti. A criança foi transferida com um quadro de convulsão, mas na verdade era vítima de um aneurisma do tamanho de uma bola de gude que havia provocado uma hemorragia. Após uma intervenção delicada e de elevado risco, a lesão foi tratada, e hoje o pequenino está em franco processo de recuperação. “Foi uma tensão muito grande, pois um sangramento costuma ser fatal em um recém-nascido”, lembra Cavalcanti. “Não encontrei registros de um paciente tão novo com esse tipo de problema”, relata.

Há pelo menos 200 anos os cientistas se dedicam a desvendar o intrincado mecanismo de funcionamento do cérebro, uma complexa estrutura que envolve a interação de 100 bilhões de neurônios. Avanços significativos no terreno da neurocirurgia remetem ao primeiro quarto do século XX, sobretudo após o fim da I Guerra Mundial, quando as batalhas deixaram um grande número de soldados com traumatismo craniano. Vistas como último recurso, as cirurgias passaram a ser praticadas em larga escala, o que contribuiu para seu desenvolvimento. Na virada das décadas de 60 para 70, o uso de microscópios potentes e a implantação dos centros de terapia intensiva melhoraram consideravelmente os resultados das intervenções. Outro grande salto nessa época ocorreu graças ao desenvolvimento da tomografia computadorizada, que permitiu a visualização do cérebro em detalhes. Desde então, o aprimoramento dos aparatos tecnológicos vem possibilitando um número cada vez maior de cirurgias minimamente invasivas. “No futuro, a tendência é que a operação com a cabeça aberta fique restrita apenas aos casos de traumatismo”, aposta o neurocirurgião Vinícius Mansur Zogbi, membro da equipe do IEC.

Barrow Neurological Institute
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No instituto carioca, os procedimentos são executados em conformidade com os mais recentes protocolos internacionais. Nessa lista se inclui a estimulação cerebral profunda, que atenua os sintomas da doença de Parkinson por meio da implantação de um eletrodo no cérebro. O objetivo é regular a atividade encefálica, numa dinâmica semelhante à do marca-passo cardíaco. “Conheci o hospital em uma visita ao Brasil e fiquei impressionado com o gabarito do staff e a tecnologia usada. Tenho certeza de que logo ele será reconhecido internacionalmente como um centro de excelência”, disse a VEJA RIO o neurocirurgião Robert Spetzler, diretor do Barrow Neurological Institute, no Arizona (EUA), um dos centros médicos mais importantes do mundo em pesquisa e tratamento de lesões neurológicas.

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Fernando Lemos
Fernando Lemos ()

A impressão positiva do especialista é compartilhada pelos pacientes que se tratam ali e por seus familiares. Em junho do ano passado, o ortopedista Ricardo Steiner sentiu que estava perdendo a visão periférica. Recebeu o diagnóstico de que um tumor comprimia seus nervos ópticos e foi aconselhado a se submeter a uma operação para que o quadro não se agravasse. Mas antes ele precisaria cumprir o período de carência de seu plano de saúde. A solução, então, foi recorrer ao IEC. “Nunca tinha usado o sistema público de saúde nem para consultas”, confessa o médico, morador da Barra, hoje com a visão restabelecida. Outro caso bem-sucedido é o da menina Maria Clara Araújo, de 10 anos. Portadora de uma displasia no córtex desde bebê, ela chegava a ter mais de vinte convulsões por dia. Depois de uma via-crúcis por hospitais públicos do Rio, seus pais conseguiram interná-la no instituto, onde se submeteu a uma cirurgia, que obteve um resultado além do esperado. “Ela nunca mais teve crises”, diz o pai, o entregador Alex de Oliveira Araújo, que mora com a família no Complexo da Maré. Histórias como essas devem se tornar ainda mais comuns em breve. No início do mês, foi concluída a concorrência para a construção de um anexo ao lado da sede. Com investimento de quase 50 milhões de reais, o prédio terá doze andares, UTI pediátrica, 135 leitos de enfermaria, laboratórios de pesquisa e um centro de reabilitação. A previsão é que, quando a nova ala entrar em atividade, em 2016, as cirurgias passem de cinco para dez por dia. “Espero que esse lugar seja um motivo de orgulho para os cariocas”, diz Niemeyer. Em apenas um ano, o IEC já se tornou, no mínimo, um oásis de qualidade em nossa combalida saúde pública.

Selmy Yassuda
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