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Inferno dentro de casa

As circunstâncias da tragédia que vitimou o diretor Eduardo Coutinho, cânone do cinema documental no país

Por Bruna Talarico e Carolina Barbosa
Atualizado em 2 jun 2017, 13h13 - Publicado em 12 fev 2014, 18h43

Um parricídio é sempre um crime chocante ao extremo. No último domingo (2), Daniel de Oliveira Coutinho, 41 anos, matou o pai, o cineasta Eduardo Coutinho, com uma faca de cozinha. Ainda dentro do apartamento em que a família morava, numa área valorizada entre a Lagoa e o Jardim Botânico, ele tentou também tirar a vida de sua mãe, Maria das Dores, a Dorinha, 62, que conseguiu escapar e foi internada no Hospital Miguel Couto com perfurações na altura dos seios e do abdômen. Uma unanimidade positiva do cinema nacional, Coutinho era um documentarista de olhar sensível, que deu voz e imagem a figuras simples do dia a dia, como os moradores de uma favela carioca (Babilônia 2000) e os condôminos de um prédio altamente populoso em Copacabana (Edifício Master). Alguns desses personagens compareceram ao sepultamento do diretor, na segunda passada (3), no Cemitério São João Batista, protagonizando, involuntariamente, cenas de forte emoção. Devido a esses aspectos, a cidade iniciou a semana consternada, à procura de respostas que, se não amenizariam a dor da perda, poderiam ao menos servir de alerta para evitar tragédias que se desenham à surdina e de repente eclodem.

Conhecido como Dani Boy na adolescência, o pivô do episódio foi um jovem que chamava atenção pela beleza, tendo feito muito sucesso com as mulheres. Nessa fase da vida, podia ser visto surfando em Ipanema ou jogando pelada no Clube Piraquê, onde passava as tardes com um grupo fiel de amigos. Mas era no judô e no muay thai que se destacava como esportista. Descrito por companheiros do Colégio Andrews como um rapaz de sorriso fácil, popular e querido por todos, Daniel, aos poucos, começou a beber em encontros sociais. Com o tempo, o consumo de álcool se acentuou. Há relatos também de que passou a usar entorpecentes, numa combinação que o levou a se comportar de forma inadequada em diversas ocasiões, demonstrando impaciência e intolerância. Enfrentaria ainda turbulências na passagem para a vida adulta. O jovem comunicativo de então deu lugar a um homem taciturno, introvertido e cada vez mais solitário. “O alcoolismo acabou com a vida do Dani e levou embora o amigo da forma como o conhecemos”, diz o colega de infância Andrés Pinilla. “Infelizmente, na época, não entendemos que aquilo que acontecia era uma doença e não fizemos nada para ajudá-lo.”

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Pessoas próximas à família se referem às circunstâncias que resultaram no crime como “o inferno dentro de casa”. Com Daniel recolhido no apartamento, os atritos entre pais e filho se tornaram mais frequentes e, algumas vezes, violentos. Numa tentativa de aproximação, Eduardo Coutinho convidou Daniel para ajudá-lo na produção de seus documentários. Ele teve participação ativa empunhando uma câmera em Babilônia 2000, que retrata o último dia daquele ano em uma favela do Leme. Entretanto, sua desenvoltura não foi a mesma em Edifício Master, lançado dois anos depois. Ao presenciar um bate-b­oca entre dois personagens, ficou desnorteado e pediu para deixar as filmagens. Sua instabilidade crescia a olhos vistos. Diante de toda a situação, a família se isolava em casa. Daniel chegava a dizer que sua mãe estava dormindo para evitar a aproximação de uma visita. Entre quatro paredes, o rapaz continuava a abusar do álcool e das drogas. As brigas pioraram. “Os pais tentavam preservá-lo ao máximo e foram muito pacientes o tempo inteiro. A Dorinha e o Coutinho sempre amaram muito esse filho (Daniel tem ainda um irmão, Pedro, 42 anos, promotor de Justiça radicado em Petrópolis)”, conta a professora de arte Zélia Briseno, amiga de Dorinha e uma das pessoas acionadas por ela quando se refugiou no banheiro de casa, já golpeada.

Uma investigação preliminar feita no dia da tragédia constatou que Daniel foi vítima de um surto psicótico. Existe a suspeita de que ele sofra de esquizofrenia, patologia que costuma se manifestar entre os 15 e os 25 anos e que cria um distanciamento da realidade, sendo comum a seus portadores ter alucinações e delírios. Como se sabe, logo após o episódio, Daniel disse a um vizinho que havia “libertado” o pai. “A esquizofrenia é conhecida como o câncer da psiquiatria, por ser a doença mais complexa nesse campo”, afirma o presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria, Antônio Geraldo da Silva. “Em geral, essas pessoas não são violentas. A falta de tratamento, aliada ao abuso de álcool e das drogas, pode servir de gatilho para um surto dessa natureza”, avalia o psiquiatra Jorge Jaber, especialista em dependência química. Para escapar do martírio, Coutinho continuava muito ativo, envolvendo-se em vários projetos. Infelizmente para todos os que amam o cinema, ele não conseguiu fugir do seu trágico destino.

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