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O jogo da memória

Eles foram ao Maracanã no Mundial de 1950, guardam boas e más lembranças das partidas e trazem na cabeça, além dos cabelos brancos, a imagem de uma cidade mais segura, tranquila e, claro, menos calorenta

Por Lula Branco Martins
Atualizado em 2 jun 2017, 13h05 - Publicado em 25 jun 2014, 13h51

O Rio da juventude de Rubens, Ary e Moema era quase 2 graus mais fresco. Nos bairros em que Claudio, José Paulo e Roberto cresceram, o índice de violência urbana era medido não pela quantidade de tiroteios ou de chacinas por ano, mas pelo total de batedores de carteira, gatunos, que eram presos a cada mês. Eles são personagens vivos de uma cidade que, de certo modo, não existe mais. Todos eram jovens na década de 50, e têm ainda outro laço a uni-los: aficionados de futebol, participaram da primeira Copa que o Brasil sediou. Assistiram, no Maracanã, a vitórias acachapantes da seleção, assim como à triste derrota para o Uruguai na final. No Mundial de hoje, ainda torcem pelo escrete nacional, penduram bandeiras na janela e sopram buzinas quando sai gol. Valendo-se de suas lembranças (que podem ser vagas, até erráticas, dourando uma pílula aqui e outra ali, mas jamais mentirosas), VEJA RIO busca recuperar a emoção daqueles jogos e traçar um panorama do dia a dia do carioca na época.

Selmy Yassuda
Selmy Yassuda ()

Éramos 2,3 milhões de habitantes, um terço da população atual. Andava-se à beça de bonde (mais barato que ônibus), e não de metrô nem de BRT. Não havia leite em caixa, e sim em garrafas de vidro enchidas, na porta de casa, por uma espécie de carro-pipa. Mulheres preferiam a saia à calça comprida. A moderna música brasileira não tinha sido inventada e naqueles tempos pré-bossa nova eram marchas, sambas e boleros que dominavam as rádios ? especificamente em 1950, o baião de Luiz Gonzaga invadiria o dial, tal como fizeram, quatro décadas depois, os sertanejos. A duplinha Ipanema/Leblon ainda não brilhava no ranking dos bairros. Tuberculose matava. A Colombo reluzia. No Alto da Boa Vista, a temperatura máxima era, em média, 25,3 graus, e não, ufa, 26,9.

Selmy Yassuda
Selmy Yassuda ()

Nem tudo sobre essa época de 64 anos atrás pode ser dito assim, de forma categórica. Por exemplo, paira no ar a dúvida sobre como era feita a coleta de lixo naquele tempo. “Uma carroça puxada a cavalo recolhia os sacos”, lembra o contador Rubens Rodrigues, da Tijuca, espectador da vitória do Brasil sobre o México por 2 a 0, na estreia da seleção naquele torneio. “Na época já havia caminhões com uma caçamba”, rebate Moema Perrone, bibliotecária aposentada, hoje moradora do Flamengo, que esteve no Maraca na finalíssima. Nem ele está certo, nem ela está errada. É que o sistema foi sendo implantado aos poucos, dependendo do bairro, por isso a controvérsia.

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Felipe Fittipaldi
Felipe Fittipaldi ()

No assunto futebol, aí também não há unanimidade. “O Barbosa falhou feio naquele lance”, diz Roberto Leitão sobre o chute do ponta Ghiggia, que venceu nosso goleiro. Sempre bem-­humorado, figura fácil no Baixo Gávea, Leitão é engenheiro, ex-atleta de luta livre e guarda até hoje o ingresso do jogo. “A culpa foi do Bigode, que deixou o uruguaio passar”, contrapõe Ary da Volta, oficial reformado do Exército, que na época morava em São Cristóvão e foi, a pé, a todos os jogos. A todos? Sim, deu sorte, tinha um tio que trabalhava num bar dentro do estádio. “Eu botava um jaleco, servia refrigerante aos locutores de rádio e acabava vendo as partidas de dentro da cabine”, relata o militar, que é vascaíno doente ? e talvez daí venha a birra contra o lateral-­esquerdo, que, na época, jogava no Flamengo. Muito sagaz o coronel.

Viram aquele jogo cerca de 175?000 pessoas. Há divergências sobre qual seria o número exato de espectadores; fotos mostram arquibancadas lotadas ? mas não com gente se espremendo ? e, por outro lado, muitos convidados acabaram não entrando na listagem oficial de pagantes. Memorialista daquela década, autor de biografia sobre o presidente Juscelino Kubitschek, o jornalista Claudio Bojunga estava lá. Foi à final com o avô. Tinha 10 anos e recorda que deparou com um estádio inacabado: “Tivemos de estacionar num matagal”. Outra lembrança: “Já havia cambistas naquele tempo. Parece ser uma instituição imorredoura”, diverte-se.

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Brasil e Uruguai (2 a 1 para eles), o certame mais comentado e lamentado daquela Copa, não é o único jogo que merece destaque. “Cantei Touradas em Madri”, conta o advogado ipanemense José Paulo Soares, referindo-se à goleada de 6 a 1 diante da Espanha, ocasião em que a marcha de Braguinha foi entoada em coro no estádio. Aliás, cantar uma música a título de deboche era o máximo que as arquibancadas se permitiam, algo bem distante dos palavrões que pululam hoje em dia, revelados em alto e bom som nas próprias transmissões de TV. Nesse sentido, vovó Moema é quem recorda: “Éramos uma sociedade mais pura, um Rio menos bruto”. Claudio Bojunga reforça: “Tirando Copacabana, já bastante agitada, a cidade era bem tranquila. O Leblon, por exemplo, não passava de um arrabalde”.

Nascido em área menos nobre, Rubens Rodrigues carrega uma bonita história de vida. Perdeu os pais ainda criança, foi mandado para um orfanato e chegou a morar na rua, até receber ajuda de uma madrinha, do Estácio. Na adolescência, virou-se como boy e com o primeiro dinheirinho comprou um ingresso da Copa. Depois, conseguiu fazer faculdade, caso­u-se, teve quatro filhos. Mora perto do Alzirão, e não se incomoda com a algazarra. “A cidade fica linda de verde e amarelo”, ele diz.

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Ruas coloridas, muros pintados, telões na areia da praia, enfim, esse clima de Fifa-fan fest permanente é coisa das Copas de agora. Naquele tempo, nem televisão para acompanhar os jogos o carioca tinha em casa. Quem não pôde comparecer ao vivo às partidas se virava com o rádio, ouvindo a voz de narradores como Oduvaldo Cozzi e imaginando os lances. Só a partir da década de 70 o Rio passou a se enfeitar para os Mundiais. E é Roberto Leitão, aquele do ingresso negociável, quem fala sobre um outro uso da tinta na cidade, com objetivos bem menos festivos. Nascido em 1930, ele recorda: “Por anos a fio, a face externa dos lampiões dos postes nas ruas da orla era pintada de preto, para que os navios alemães não pudessem nos enxergar”. A Copa de 1950, a primeira do pós-guerra, já nos deixava a lição de que muito melhor é combater na grama, na bola ? contra a própria Alemanha, se for o caso, ou contra a Argentina, a Holanda, a Itália, quem sabe até de novo contra o Uruguai. Mas que seja diferente agora, para alegria dos nossos vovôs e vovós.

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