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O retrato do descaso

Mais de 40 milhões de reais foram gastos na modernização das delegacias de polícia do Rio e, ainda assim, registrar uma simples ocorrência pode se tornar um suplício de mais de três horas

Por Renan França e Caio Barretto Briso
Atualizado em 5 jun 2017, 14h39 - Publicado em 10 fev 2012, 17h26

As paredes pintadas, a mobília e os computadores novos garantem uma boa impressão inicial. Mas apenas alguns minutos na 5ª Delegacia Policial, no Centro, são suficientes para acabar com ela. Em uma recente tarde de terça-feira, doze pessoas esperavam para ser atendidas, entre elas uma jovem grávida, em um espaço exíguo, com somente um banco de cinco lugares. Ao lado, dois assaltantes algemados, presos em flagrante, aguardavam para ser interrogados pelo delegado. Motos apreendidas, à esquerda do balcão principal, ajudavam a atulhar a sala, onde o ar-condicionado não funcionava. Enquanto todos reclamavam da demora, um policial militar se dirigia a um dos presos aos berros para que ele mantivesse a cabeça baixa e os olhos voltados para o chão. Escolhida há treze anos para inaugurar o programa Delegacia Legal, o projeto do governo estadual que desde então aplicou mais de 40 milhões de reais na modernização desses postos, a 5ª DP foi também a unidade com o pior desempenho entre dez distritos da cidade, de acordo com o levantamento realizado por VEJA RIO para avaliar as condições de atendimento. Ali, para fazer um simples registro de ocorrência (RO), podem-se perder até três horas na fila, sem contar os quarenta minutos para a expedição do documento. ?O problema não é falta de tecnologia nem de equipamento. Isso poderia ser resumido numa palavra: descaso?, diz a promotora Renata Bressan, coordenadora criminal do Ministério Público Estadual.

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Quem nunca passou pela experiência de registrar uma ocorrência, providência básica tanto no caso de pequenos delitos como no de crimes graves, talvez não saiba quanto isso pode ser desagradável. Assaltado por três garotos (um deles armado) em Copacabana, por volta das 11 horas, o estudante de desenho industrial Antonio Pedro Alves, 21 anos, foi à 12ª DP, na Rua Hilário de Gouveia, dar queixa. Os agentes de plantão se recusaram a atendê-lo e disseram que o RO seria feito apenas quando o delegado voltasse do almoço. Somente duas horas e trinta minutos depois, o titular do posto retornou – de barriga cheia, naturalmente -, enquanto oito pessoas que estavam na fila deixaram de comer e cancelaram seus compromissos para esperá-lo. No mesmo dia, a estudante de direito Ingrid Menendez, 27 anos, ficou na fila das 15 horas às 18h30 para ser atendida na 5ª DP. Ela procurou a polícia para resolver uma encrenca familiar e denunciar a mãe por não pagar pensão à irmã mais nova, de 15 anos, que está sob sua guarda. Quando finalmente foi chamada, ouviu do encarregado que sua ocorrência não seria documentada. ?Ele disse que não registraria esse tipo de caso na delegacia dele e que, se eu quisesse, poderia procurar outra unidade ou ir reclamar na corregedoria?, afirmou. ?Esperei todo esse tempo apenas para ouvir grosserias.?

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Apesar dos êxitos alcançados nos últimos anos no combate ao crime organizado, denúncias de corrupção, envolvimento com bandidos, subornos e abuso de autoridade corroeram a imagem da polícia fluminense. Uma pesquisa recente do Ibope realizada em 123 municípios de todo o país mostrou que 70% dos cariocas não confiam nos homens da lei, contra a média de 52% nas demais cidades brasileiras. Não raro, a desconfiança é tamanha que os cidadãos preferem deixar de procurar ajuda. De acordo com uma enquete feita na região metropolitana do Rio pelo Instituto de Estudos da Religião e pelo Centro de Pesquisa e Documentação da Fundação Getulio Vargas, 80% das vítimas de furto, roubo e assalto simplesmente deixam de fazer a ocorrência – salvo em casos que envolvem automóvel, para ressarcimento de seguro. Os motivos apontados pela maioria dos entrevistados foram ?não acreditar na polícia? e ?não querer entrar em uma delegacia?. ?Quem tem coragem para fazer uma queixa já vai esperando ser maltratado?, diz o antropólogo Roberto DaMatta. ?Falta-nos algo que os Estados Unidos sintetizam como exemplo máximo: o sentimento de comprometimento com o próximo.?

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Os americanos, que chegam a usar boné e camiseta com emblema policial, não só respeitam como admiram os homens da lei. Um estudo feito pelos pesquisadores Timothy Flanagan e Denis Longmire mostra que três em cada quatro de seus compatriotas acham excelente o trabalho realizado pelas forças de segurança. Há razões concretas para isso. Enquanto por aqui os agentes conseguem resolver apenas 14% dos inquéritos instaurados, em Nova York, por exemplo, o índice de êxito das investigações é de 50%. Uma das principais diferenças está no processo de registro da queixa – qualquer posto, inclusive cabines, está preparado para recebê-la. Nos crimes menos graves, os próprios policiais de rua podem assumir a apuração. Com a estranha divisão que temos no Brasil – a corporação militar cuida do patrulhamento, enquanto a civil fica com a investigação -, tal abordagem seria impossível. ?Nosso objetivo é muito claro: resolver os problemas da população rapidamente. Precisamos de cinco a dez minutos para registrar uma ocorrência simples. As mais complexas nós fazemos em no máximo trinta minutos?, afirma o detetive Marc Nell, porta-voz do New York City Police Department. Que inveja!

Embora não seja tratado como tal, o registro de ocorrência é o documento mais importante produzido pela Polícia Civil. As informações nele contidas podem ser cruciais para o desfecho de uma investigação, pois foram colhidas ainda no calor dos acontecimentos, quando dados e detalhes preciosos estão frescos na cabeça da vítima e das testemunhas. Ao redigir a declaração, o policial deve descrever da maneira mais minuciosa possível as circunstâncias que cercam o delito. É a partir desse relato que cada delegado decide se a queixa merece ou não a instauração de um inquérito. Na maioria das vezes, porém, essa etapa é realizada de forma tão precária, tão burocrática, que inviabiliza o prosseguimento do caso. Do total, 60% transformam-se em arquivo morto, sem que sequer as investigações sejam iniciadas. ?Nosso principal problema é o efetivo de agentes. Temos 2?050 homens na capital, e o número só diminui?, diz Fernando Veloso, subchefe da corporação.

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Não é só a quantidade que exerce um papel nefasto nessa equação. A deficiência de atendimento nas delegacias está diretamente ligada a um problema maior: a falta de preparo dos agentes. Grande parte da corporação é formada por profissionais de baixa qualificação, sem condições nem vontade de aprimoramento. Existem exceções, claro, mas poucos estão ali porque acreditam na importância de servir à população ou porque sempre sonharam em combater o crime. Para a maioria, trata-se apenas de um emprego público, do qual eles esperam tirar o máximo possível com o mínimo de esforço. Na semana passada, insatisfeitos com o salário, e com um suposto excesso de trabalho, ameaçavam entrar em greve, inspirados no motim da PM baiana. ?A polícia do Rio funciona na base do ?pega ladrão?. Quem deveria investigar não investiga?, lamenta Pedro Abramovay, professor de direito da FGV e ex-secretário nacional de Justiça.

A negligência policial se comprova facilmente. Das trinta pessoas que registraram ocorrência entrevistadas pela reportagem nos últimos dois meses, nenhuma recebeu sequer uma resposta dizendo se o inquérito foi ou não instaurado. Uma engenheira de 25 anos, que pediu para não ser identificada, ao perguntar a um inspetor da 14ª DP (Leblon) se eles telefonariam caso encontrassem o marginal que roubou sua bolsa e documentos, ouviu uma gargalhada como resposta. ?Depois de me paquerar e fazer brincadeiras de mau gosto com o fato de eu ser casada, ele disse que minhas coisas nunca seriam recuperadas?, contou a jovem.

Embora ofuscados por falhas tão gritantes, há sinais de alento para quem espera um dia poder contar com um amparo policial satisfatório. Mesmo ruins, os distritos do Rio beneficiados pelo programa Delegacia Legal são melhores hoje do que no passado. ?Antes, eram verdadeiros barris de pólvora. Houve avanço, mas é preciso melhorar?, afirma a promotora Renata Bressan. Pelo menos duas unidades, a de São Cristóvão e a da Gávea, tiveram tempo médio de atendimento entre 40 e 45 minutos – que, se não ideal, é pelo menos bastante inferior ao das demais. O atual sistema de agendamento pela internet disponível em sete distritos, ainda que com falhas (como a falta de respeito aos horários marcados e as filas a que os interessados se submetem para o atendimento), deve ser reestruturado e ampliado. Outra medida planejada é um sistema que comunique à vítima o encaminhamento das ocorrências e o resultado das investigações. Como se vê, existem projetos. Para que a população recupere a confiança e seja bem servida, no entanto, não bastam apenas boas intenções. É preciso resultado.

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