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Mostra reúne 500 desenhos de Millôr Fernandes no Moreira Salles

Trabalhos originais do desenhista foram publicados na imprensa ao longo de seis décadas. Exposição resgata a verve e o talento de um artista e pensador inigualável

Por Pedro Tinoco
Atualizado em 2 jun 2017, 12h10 - Publicado em 9 abr 2016, 01h00

A colorida floresta de lápis tomava conta da mesa de trabalho. Guaches e aquarelas ficavam sobre outro móvel. No entorno, quadros, livros aos milhares, arquivos de metal e mapotecas. Um ano após a morte de Millôr Fernandes (1923-2012), seu estúdio, na cobertura da Rua Gomes Carneiro, 52, continuava praticamente intocado. O cenário onde por quase cinquenta anos trabalhou o humorista, dramaturgo, desenhista, tradutor, roteirista e compositor — que preferia ser chamado de jornalista — causou forte impressão em Julia Kovensky. “As primeiras visitas foram experiências incríveis. O ambiente guardava a presença dele e dizia muito sobre sua maneira de criar”, lembra a coordenadora da área de iconografia do Instituto Moreira Salles. Naquele começo de 2013, foi celebrada a cessão em comodato, para o IMS, de rica parte do acervo do jornalista. Um minucioso trabalho de levantamento teve início ali mesmo, no apartamento em Ipanema. Do processo de catalogação e pesquisa já resultou o livro Millôr 100 + 100: Desenhos e Frases, lançado em 2014. Agora, chega a vez de um portento anunciado — a exposição Millôr: Obra Gráfica, reunião de 500 desenhos que cobrem seis décadas de atuação do homenageado na imprensa, em cartaz a partir do dia 16.

Um homem meticuloso dava expediente naquela cobertura. Millôr guardou quase 7 000 desenhos originais, reproduzidos em dezessete veículos entre 1945 e o começo dos anos 2000. Sua coleção particular vai dos primeiros (e definidores) momentos de brilho, na histórica seção Pif-Paf, página dupla que ocupou na revista O Cruzeiro de meados da década de 40 a 1963, a traços feitos no computador, aventura na qual foi um dos pioneiros. Suas assinaturas, que são criações à parte, aparecem em VEJA, publicada pela Editora Abril, Isto É, O Pasquim, Jornal do Brasil, O Dia, Correio Braziliense, Folha de S.Paulo e O Estado de S. Paulo, além do lisboeta Diário Popular. Voos-­solo, como um Pif-Paf independente (oito números de vida em 1964) ou a ousada Voga (cinco números em 1951), também estão guardados. Por todo esse tempo, o autor também colecionou os periódicos nos quais os trabalhos foram publicados, preservando-os em volumes encadernados ano a ano. Completa o tesouro aos cuidados do IMS um arquivo pessoal, miscelânea que inclui de contratos comerciais a pastas de pesquisa sobre assuntos variados — nelas, amontoam-se textos sérios, rascunhos de desenhos e piadas sobre calvície, mulher, adultério, chatos e Chagall, entre muitos outros temas.

QUADRO 1
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Ao reunir produção tão dispersa (veja acima alguns dos desenhos selecionados), a exposição na sede do Instituto Moreira Salles, na Gávea, joga luz sobre um gênio — o que, aliás, ele adoraria. “O principal assunto do Millôr era o próprio Millôr”, diz Cássio Loredano. Curador da mostra, ao lado de Julia Kovinsky e do professor e editor Paulo Roberto Pires, o desenhista passou os últimos três anos debruçado sobre os originais, examinando-os e comparando-os com o material impresso. “Tive uma noção de todo o sistema. Esse conjunto é esclarecedor, revela as obsessões, as muitas pinimbas dele, a intolerância à burrice, a raiva de médicos e psicanalistas”, diverte-se Loredano, um estudioso que já esmiuçou em livro a obra do prestigiado colega J.Carlos (1884-1950). O trio dividiu por cinco seções temáticas os desenhos para exibição: “Millôr”, ou seja, ele por ele mesmo; “Pif-Paf”, o período de formação em O Cruzeiro; “Brasil”, a maior sala, inspirada em parte na cruzada do autor contra a ditadura militar e em outras manifestações de mediocridade no poder; “Condição humana”, espaço de temas amplos como casamento, relações sociais, solidão e Deus, e “À mão livre”, definido por Pires como “uma sala para aliviar, dedicada a imagens coloridas, quase infantis”. Uma alentada linha do tempo, repleta de informações biográficas, completa a visita. O catálogo, com todo o acervo exposto, será lançado na abertura.

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Desde os primórdios em O Cruzeiro, quando ainda usava Emmanuel Vão Gôgo como nome artístico e delegava as ilustrações a Péricles (1924-1961), o criador do famoso personagem Amigo da Onça, Millôr dava mostras de seu humor inconfundível — nada mal para alguém autodefinido como um “escritor sem estilo”. Em longa trajetória, ele foi da leve ironia ao chute na canela, com breves pausas para o lirismo, muitas vezes esbanjando erudição. As obras escolhidas para a exposição fazem justiça à proeminência do homenageado na história recente do país — e do Rio, em particular—, além de resgatar seu valor artístico. Millôr participou de quatro mostras em vida. Foram individuais no MAM, quando o museu ainda ficava no térreo do prédio do MEC (1957), na Petite Galerie, em Ipanema (1960), e na Galeria Graffiti (1975), além da coletiva Arte Agora II — Visão da Terra, na sede atual do MAM (1977). A partir do quinto vernissage, o primeiro póstumo, a nova geração será apresentada a um tremendo personagem.

Millor Fernandes
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Milton Viola Fernandes. Esse era o nome do garoto que, nascido no Méier, em 16 de agosto de 1923, perdeu o pai com 1 ano e a mãe com 12. Criado por tios, evitou a autocomiseração desde tenra idade. Começou a trabalhar cedo e entrou em O Cruzeiro como um faz-tudo, um office-boy. Nas redações, instruiu-se — “aprendeu inglês traduzindo balão de história em quadrinhos”, lembra, impressionado, o curador Pires —, perseguiu com vontade muitas outras fontes de conhecimento e fez próspera carreira. O nome artístico definitivo vem de uma criativa leitura de sua certidão de nascimento. Ele assegura que, em vez de grafar Milton, o escrivão tascou Millôr no documento. Após trocar o subúrbio pela Zona Sul (sem nunca esquecer as origens, orgulhava-se de ter se formado na “universidade livre do Méier”), dizia (ou deixava dizerem) que inventou o frescobol nas areias de Copacabana. Mais tarde, já instalado havia décadas no bairro de seu coração, defendeu, em 1990, “a demarcação das terras de Ipanema”. Lá, não por acaso, foi eternizado com a inauguração do Largo do Millôr, logradouro honorífico entre a Praia do Diabo e a Praia do Arpoador. Em vez de estátua, deixou expresso o desejo de que construíssem um banquinho no lugar, para o povo assistir confortavelmente ao pôr do sol, e assim foi feito.

Personagem do auge da boemia ipanemense, ele ainda encontrava tempo para corridas diárias na orla e a prática do jacaré, além de algumas incursões pela pesca submarina. Teve dois filhos, Ivan e Paula, do casamento com Wanda Rubino. A figurinista Kalma Murtinho, a escritora Marina Colasanti e a jornalista Cora Rónai cativaram sua atenção em épocas distintas. Millôr sempre foi surpreendente. Ainda em O Cruzeiro, a (má) repercussão, junto à comunidade católica, da sarcástica série ilustrada A Verdadeira História do Paraíso levou-o a deixar a revista. Após quase duas décadas de dedicação, perdeu o emprego um ano antes do golpe de 1964. Nem aí para o perigo no ar, a atividade febril da censura — que resultou no veto de inúmeras obras suas — ou a idiossincrasia dos patrões. Ele seguiu até o fim fustigando dogmas, o senso comum e os poderosos, não necessariamente nessa ordem. Um exemplo: na exposição, Fernando Henrique Cardoso, Lula e os generais da ditadura são igual e democraticamente ridicularizados. “Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados”, atestou. Entre seus admiradores, há quem defenda que, com seu temperamento indomável, Millôr deveria ser ensinado nas escolas. Independentemente de virar disciplina nos currículos, a visita ao Instituto Moreira Salles pode proporcionar uma bela aula.

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