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Dicionário Profano da FLIP

Há quem sacralize a literatura e tudo o que a rodeia. Mesmo assim, livros, autores e editores continuam se revelando demasiadamente humanos. A Festa Literária Internacional de Parati é cada vez mais uma amostra de como o prosaico se une à discussão elevada de ideias e à leitura de textos sublimes. O evento se tornou de fato uma festa, com todos os ingredientes que as boas celebrações devem ter: gracejos, trapalhadas, maledicências, encontros amorosos, bebedeiras. Os verbetes a seguir reconstitue

Por Armando Antenore e Júlia Contrucci
Atualizado em 5 dez 2016, 16h10 - Publicado em 4 jul 2011, 16h34

Aerofobia Popularmente conhecido como “medo de avião”, o desconforto teima em perseguir o escritor Ariano Suassuna, que o justifica de maneira bem lógica: “Numa rodovia, existem um buraco aqui e outro mais adiante. No céu, aonde você vai, o buraco vai embaixo”. Pode-se imaginar, então, o tamanho da bravura a que o dramaturgo paraibano se agarrou quando voou do Recife, onde mora, para o Rio de Janeiro com a tarefa de ministrar uma aula-espetáculo durante a Flip de 2005. Já nos bastidores do festival, enquanto aguardava o momento de se apresentar, descreveu as agruras da viagem aérea. Lembrou que, ao longo do percurso, o avião sacolejou e uma das aeromoças, notando a aflição do ficcionista, cuidou logo de socorrê-lo. “O senhor está com falta de ar?”, inquiriu, gentilmente. “Não, minha filha, estou com falta de terra!”

Azedume Os jornalistas que cobriram a Flip de 2003 elegeram, à boca pequena, Hanif Kureishi como o rabugento-mor da festa. Britânico de sangue paquistanês, o romancista desembarcou em Parati junto com a família, que incluía duas crianças. Talvez por causa do fardo doméstico, não encontrou disposição nem tempo para se relacionar mais de perto com os fãs e a imprensa. Daí o prêmio que os repórteres ironicamente lhe outorgaram. Entretanto, o que começou à boca pequena se alastrou à boca grandíssima, de tal modo que uma moça presente na conferência de Kureishi ousou levantar-se e indagar: “Correm boatos de que o senhor é um tremendo ranheta. O mau humor o inspira?”. Sem perder a fleuma, o literato rebateu: “Por acaso, você andou conversando com minha mulher?”

Babão A história pipocou num dos blogs que acompanhavam a Flip de 2004, o de Milton Ribeiro. Ele jantava em um restaurante do município fluminense, o Porto, quando flagrou o cantor Chico Buarque adentrando o recinto com a filha Sílvia e amigos. Horas antes, o autor do romance Budapeste e o norte-americano Paul Auster (de Leviatã) haviam protagonizado a palestra mais concorrida daquele ano. O blogueiro – e fã de literatura – relatou que a atriz Deborah Secco de repente virou assunto no grupo do compositor sessentão. Chico, desenvolto, rindo à larga, saudava com fervor e lascívia a beleza da diva. Entusiasmados, os marmanjos que o rodeavam na mesa aplaudiam e acrescentavam novos elogios. Era tão maliciosa a algazarra que Sílvia, contrariada, elevou a voz e disparou: “Pai, acho que você saiu direto da idade do lobo para a idade do bobo…”

Camuflagem Ainda na Flip de 2004, o gaúcho Moacyr Scliar passeava com roupas esportivas pela praça da Matriz quando avistou Hector Babenco. Fez um aceno, mas o cineasta não o identificou. “Sou o Scliar, homem!” Sem graça, Babenco se desculpou: “Você está diferente”. E o escritor: “É que me disfarcei de atleta”.

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Canjebrina Fundada em 1667, Parati abrigou mais de 250 engenhos de cana durante o século 18. Não à toa, se tornou a maior produtora de pinga no Brasil Colônia. Explica-se, assim, o uso do substantivo “parati” como um sinônimo da bebida. Explica-se também o motivo de a aguardente ser a vedete etílica da Flip – o município oferece até hoje inúmeras (e boas) opções do destilado, que frequentemente levam os incautos à lona. Na primeira edição da festa, uma jovem turista inglesa costumava emendar palestras com andanças por botecos nativos. Tomava tantas doses da “marvada” que invariavelmente terminava a noite se arrastando pelos cantos e lamentando: “Eu gosto muito da cachaça de Parati! Ela é que não gosta de mim…”

Colosso Vítima da talidomida – droga contra enjoo receitada às grávidas que acabou provocando malformações nos fetos ?entre o fim dos anos 50 e início dos 60 -, o mexicano Mario Bellatin não possui metade do braço direito. Com a intenção de amenizar a deficiência e atiçar os observadores, usa próteses bastante criativas, que artistas plásticos lhe confeccionam. Na festa de 2009, exibiu uma que se assemelhava à do Capitão Gancho e outra que segurava um celular. Reservou a mais surpreendente, porém, para a tarde em que ocupou o palco principal da Flip como debatedor. A peça, metálica e prateada, tinha o aspecto de um pênis. Cultuado por escrever ficções estranhas e perturbadoras, o autor não avisou que a envergaria. Simplesmente apareceu com o falo gigantesco diante da plateia. Houve, lógico, certo constrangimento: o telão que reproduzia imagens do debate evitou focalizar a prótese e o mediador da discussão, o romancista Joca Reiners Terron, recebeu a ordem de não mencionar o assunto. Minutos antes do evento, mal viu o inusitado objeto, um dos cicerones de Bellatin cogitou lhe sugerir que se livrasse daquilo. Mas, depois, recuou: “O que iria pedir? Por obséquio, Mario, arranque o braço fora?!”

Diagnóstico O repórter e escritor californiano Jon Lee Anderson já retratou paisagens devastadas e guerras como as do Afeganistão e do Iraque. Sabe, portanto, dimensionar precariedades. Quando veio à Flip de 2005, incomodou-se com a proverbial demora dos garçons nos restaurantes e, exasperado, anunciou ao se retirar de uma pizzaria sem conseguir jantar: “É mais fácil comer em Bagdá do que em Parati!”

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Engano O romancista português António Lobo Antunes nunca se esquivou de atacar o conterrâneo José Saramago, morto recentemente e ganhador do Prêmio Nobel de Literatura. Uma rivalidade que rendeu páginas e páginas de jornais e revistas. Em 2009, Antunes aportou na Flip com a fama de lobo mau, o terror dos entrevistadores. Designado para lhe fazer perguntas durante uma conferência, o jornalista mineiro Humberto Werneck anteviu o pior: “Temi que minhas questões só despertassem grunhidos e respostas monossilábicas”. De fato: assim que entrou no palco, o ficcionista se mostrava perigosamente apático. Werneck, nervoso, recorreu às apresentações de praxe, mas teve o lampejo de concluir o prelúdio com um trocadilho: “Lobo Antunes é um autor tão bom que me indago se os responsáveis pelo Nobel não cometeram um erro de português…” Xeque-mate. O convidado abriu um sorriso e deu uma palestra antológica.

Franciscano Qualquer boleiro reconhece que o talento futebolístico supera com folga as demais qualidades de Chico Buarque, inclusive os olhos verde-azulados. Em 10 de julho de 2004, um sábado chuvoso, o compositor jogou duas peladas no campinho do Trevo Clube, distante quase 5 km de Parati. Defendeu o time da Flip contra um combinado local que reunia craques como Nanã, Alicate, Cazuza e Ferrugem. Depois, enfrentou uma equipe de “amigos do festival”. Venceu a primeira batalha por 3 x 2 e a segunda por 5 x 2. Marcou apenas um gol, apesar da posição que lhe coube – centroavante. Tão logo deixou o gramado, os repórteres o cercaram: “Que jogador se saiu melhor, Chico?” Aferrando-se à parcimônia (a mesma dos devotos de são Francisco), o cantor respondeu: “A modéstia me impede de dizer”.

Fuzarca Também denominada farra, folia, forrobodó e fuzuê. Materializa-se toda vez que Parati sedia uma Flip em decorrência das infinitas confraternizações que as editoras, os organizadores do evento e os próprios escritores patrocinam nos bares, hotéis e barcos da cidade. Não raro, as baladas testemunham situações inimagináveis. Em 2009, para citar um único episódio, o historiador britânico Simon Schama – ex-professor de duas universidades hipertradicionais, a Harvard e a de Oxford – topou abrilhantar uma festinha na Casa da Cultura. Quem participou do folguedo garante: o intelectual soltou as feras. De madrugada, dançava sem camisa no meio da pista.

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Gafe O pernambucano Raimundo Carrero, autor do romance Somos Pedras que Se Consomem, cultiva o hábito de acordar cedinho, um pouco antes de o Sol nascer. Por isso, na Flip de 2004, assim que desceu para o restaurante da pousada onde dormia com a pretensão de tomar um café ligeiro, não vislumbrou praticamente ninguém ali – nem hóspedes nem funcionários. Havia apenas um figurão de óculos escuros, sentado numa mesa perto do caixa. “Deve ser o gerente”, avaliou Carrero, que de imediato perguntou: “Quando chegam os empregados?” O homem não emitiu nenhum som. “Quando?”, reiterou o escritor. Nada. “Pelo amor de Deus, cabra, quando chegam os empregados?!” O homem, ainda em silêncio, gesticulou com impaciência, ordenando que o intruso sumisse. Enquanto agitava as mãos, derrubou um prato vazio, causando uma barulheira medonha. Carrero, desconcertado, resolveu abandonar o salão. Mais tarde, narrou o caso para os amigos e apontou o gerente ranzinza. Os interlocutores caíram na gargalhada: “Que gerente, Raimundo? Aquele cara se chama Paul Auster…”

Garbo Ícone do jornalismo literário, o norte-americano Gay Talese não se opõe à proteção de baleias, pássaros e camundongos. No entanto, se preocupa realmente é com a extinção dos alfaiates. “Trata-se de uma espécie sob graves ameaças”, adverte o cavalheiro à moda antiga, que costuma aparecer em público ostentando ternos refinados. “Procuro me vestir bem independentemente da história que vou cobrir, seja um jogo de beisebol, seja uma greve trabalhista. Não me visto para as pessoas. Visto-me para as reportagens.” Na Flip de 2009, trouxe tantas roupas que sua editora brasileira, a Companhia das Letras, precisou lhe arranjar 25 cabides extras.

Gisele O cearense Xico Sá sustentou uma tese tão peculiar quanto jocosa durante a Flip de 2008: “A gente só escreve porque deseja humilhar a Gisele Bündchen”. Segundo o cronista, os intelectuais não aceitam o fato de a top gaúcha se projetar mundialmente pela beleza e, ressentidos, alimentam a obsessão de inventar personagens e tramas. “Você pode ser maravilhosa, Gisele, mas não consegue redigir um livro”, zombariam, entre uma frase e outra.

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Gnomonia No mesmo debate em que Xico expôs a teoria amalucada, Humberto Werneck discorreu sobre O Santo Sujo, biografia de Jayme Ovalle (1894-1955) que estava lançando. Após lembrar diversas criações do boêmio, poeta e compositor de Belém, aguçou muitíssimo o interesse dos ouvintes quando citou a Nova Gnomonia. O termo se refere à classificação dos seres humanos em cinco tipos: o dantas (puro de coração), o pará (impetuoso, capaz de qualquer coisa para atingir o que almeja), o mozarlesco (sentimental), o kerniano (impulsivo) e o onésimo (desmancha-prazeres). Mal a explanação acabou, parte da plateia já cochichava tentando enquadrar amigos, parentes e celebridades numa das categorias. A brincadeira ultrapassou os limites do auditório e, àquela noite, se prolongou por várias mesas de bar.

Idioma Em agosto de 2003, Julian Barnes publicou um artigo divertido sobre a Flip no conceituado jornal britânico The Guardian. O ficcionista atribuía adjetivos lisonjeiros à primeira edição da festa e destacava, intrigado, certas particularidades da língua que escutou pelas ruas de Parati. Enfatizou, por exemplo, como os brasileiros se recusam a pronunciar direito nomes terminados em consoantes (Eric vira Eriqui, e Robert Redford, Hobbidgy Hedgefordgy). Também buscou esclarecer o significado da expressão “para inglês ver” (“for the English to see”): “Se você é dono de uma montanha, desmata as regiões mais longínquas dela e constrói um pequeno refúgio ecológico na área preservada com o intuito de despistar turistas ou bisbilhoteiros, você está fazendo algo para inglês ver”.

Inimigo Um inseto rasteiro invadiu a palestra de Simon Schama em julho de 2009. O historiador, que um dia antes metera o pé na jaca e incendiara a Casa da Cultura, tascou-o agora sobre o frágil invertebrado. Depois, sarcástico, explicou o pisão: “Era um enviado de George W. Bush”.

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Menino Outro historiador britânico, Eric Hobsbawn, roubou a cena na Flip de 2003. À época com 86 anos, revelou-se um garoto prodígio. Zanzava por Parati esbanjando simpatia, disposição e inteligência. Ora posava para fotos e assinava camisetas de universitários, ora espalhava tchauzinhos. Na abertura da festa, acompanhou um pronunciamento e um pocket show do então ministro Gilberto Gil. Pasmo, comentou: “Unbelievable! É como se, num piscar de olhos, o Mick Jagger fizesse um discurso político coerente!”

Mane O mato-grossense Joca Reiners Terron, autor da novela Hotel Hell e dos poemas de Eletroencefalodrama, admira Paul Auster. Na Flip de 2004, soube que participaria de uma leitura pública com o romancista de Nova Jersey e não titubeou. Sacou da prateleira doméstica um livro curto de Auster, The Story of My Tipewriter (A História de Minha Máquina de Escrever), e o colocou debaixo do braço. Iria requisitar um autógrafo do ídolo. Na hora H, entretanto, congelou. “O Paul avistou o livrinho em minhas mãos e disse que queria folheá-lo”, relembra Terron. “Mesmo assim, travei completamente e não ousei lhe pedir nada.”

Rock’n’roll O cantor e compositor norte-americano Lou Reed deveria estar na Flip de 2010, mas cancelou a viagem sem nenhuma justificativa palpável. Alegou um vago “motivos pessoais” e ponto. Meses antes, o empresário e o agente do roqueiro fizeram reivindicações sui generis para garantir a presença dele em Parati. O quarto da pousada onde Reed iria se hospedar precisaria conservar-se à temperatura exata de 74 graus Fahrenheit (23,3 0C) e abrigar um par de tesouras. Em compensação, não poderia ter produtos com álcool ou açúcar.

Sósia Nem bem aterrisou na Flip de 2003, Zuenir Ventura se surpreendeu rodeado de garotas e rapazes. “O senhor é o máximo! Amamos tudo que escreve.” O cronista mineiro agradeceu e lustrou o ego. Ouviu, então, uma das meninas gritar para alguém que chegava: “Corra! Venha conhecer o Saramago!” Na Flip de 2004, escaldadíssimo, o jornalista tratou de levantar as orelhas quando uma senhora lhe solicitou um autógrafo. “Você sabe mesmo quem sou?”, interpelou o escritor. “Claro! É o Zuenir Ventura.” “Errado”, protestou. “Sou o Saramago.”

Uísque Polemista e lendário beberrão, o crítico inglês Christopher Hi-tchens experimentou a cachaça de Parati e a julgou “muito fraca”. Em seguida, provou um copo de caipirinha, torceu o nariz e desdenhou: “Coisa para moças”. Passou o resto da Flip de 2006 consumindo as garrafas de Johnnie Walker que guardava na Pousada da Marquesa.

Urubaldo Um urubu de asa quebrada frequentava os arredores dos botecos paratienses durante a Flip de 2004 – edição que João Ubaldo Ribeiro esnobou. Depois de concordar em estrelar um debate, o romancista abdicou do compromisso por avaliar que a festa priorizava os autores da Companhia das Letras (o baiano publicava pela Nova Fronteira). O urubu, de início, não tinha nada a ver com o pato, mas acabou se envolvendo no bochicho quando um engraçadinho, sob aplausos, o apelidou de Urubaldo.

Volatilidade Característica principal da paixão que acometeu António Lobo Antunes e a doutoranda carioca Raquel Cristina dos Santos Pereira. O casal se conheceu na Flip de 2009. Ela estudava os romances do escritor. Ele se deixou seduzir pelos estudos dela. O cupido os atingiu de chofre e, de chofre, os abandonou. A relação sobreviveu apenas dois meses.

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